Uma fábula de verão, porque haverá outubro e haverá primavera.
Há
exatos 10 anos, escrevi um artigo cujo título era, “No gueto, pensando”.
A partir de 2015, porém, senti estar sendo alforriado. Conservadores e
liberais haviam criado os próprios espaços, os que éramos poucos nos
tornamos muitos, muitos. De repente, fomos 47 milhões e vencemos a
eleição de 2018.
Naquele exato
momento, vivemos o êxtase, mas realizamos o intolerável. Mobilizou-se o
mundo das sombras. Acordamos as potestades do Averno. Foi tudo muito
rápido. Agora, nos vemos de novo no gueto, contidos num sítio
existencial bizarro, cujos muros são tão invisíveis quanto sensíveis,
dentro dos quais vamos minguando em cidadania e sendo suprimidos, até
mesmo, do direito de expressar opiniões. Estamos sitiados pelo
Congresso, pelas altas Cortes, pela mídia que se abastardou, pelas
“diretrizes da comunidade” nas plataformas das redes sociais.
A caçamba e a
corda foram recolhidas. As instituições jazem no fundo do poço do
descrédito. Do ministro do STF ao camarada jornalista, do ex-presidente
descondenado ao aluno que agride a professora, a noção de limites foi
perdida. Mas não te passe pela cabeça, leitor, apontar causas para o que
vê acontecer! Acabarás no gueto. O mundo das sombras veio às claras e
te cobra total submissão.
Diariamente
nos é ensinado que para não se dar mal, conservadores e liberais
precisam reconhecer-se responsáveis por todos os males. Dizer que foi
nosso mundo que gerou a desgraceira.
Podemos criticar a corrupção, mas
esse é o limite.
Apontar suas causas e causadores é perigoso!
Os que
comandam fora do gueto esperam que você concorde quando dizem que as
instituições funcionam bem, que corrupção sempre existiu e é igual em
toda parte;
esperam que você aceite que ser corrupto é um mal muito
menor do que ser conservador, ou liberal. Eles não toleram os vocábulos
"verdades", "princípios" e "valores". Aprende: no Brasil deles, é mais
seguro entrar para o mundo do crime do que emitir opinião. O caminho dos
princípios acaba no gueto.
Quem propuser
algo de fato relevante perderá importância. Observa os partidos
políticos, por exemplo, e se não quiseres ir para o gueto, faze como
eles. Aprende a ser irrelevante. Quanto menos cada cidadão for, daquilo
que deveria ser, quanto menor o conteúdo, mais importante será. Pode
acabar numa tribuna. Ou de toga. Por isso, os partidos e os poderes de
Estado estão fora do gueto. Mas o presidente está dentro, claro.
A coerência
torna-se vício constrangedor. Sê incoerente e o STF te sorrirá. O mundo
que o gerou, vê o sujeito coerente como antissocial, objeto de ameaças e
maledicência. Se não quiser vir para o gueto, livre-se ele de suas
convicções. É óbvio que para o mundo das trevas este país passa muito
bem com pouco ou nenhum caráter, sem fé religiosa de qualquer espécie (à
exceção da fé no grande demiurgo de Garanhuns). Sê fiel na igrejinha do
politicamente correto, do pensamento fraco, onde a mentira deslavada se
chama narrativa. É óbvio. Para um país ser como querem é preciso
expurgar a virtude. Há que trancar a nação inteira no gueto, se
necessário, para os arranjos do poder.
Contudo, não!
Essa fábula abjeta que descrevi não é o Brasil e a nação não será
protagonista desse desastre multidimensional. O gueto é muito maior do
que seus criadores. O pai da mentira não reinará entre nós.
Percival
Puggina (77), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto,
empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de
dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o
totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do
Brasil. Integrante do grupo Pensar+.