O Estado de S. Paulo
'Estranha decisão no caso da boate Kiss'
Além de atropelar a competência do STJ, a decisão do presidente do Supremo é um convite nada sutil para reabrir a discussão sobre o início do cumprimento da pena
Suspendendo a liminar concedida em sede de habeas corpus pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS), o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luiz Fux, determinou o imediato cumprimento das penas aplicadas aos quatro condenados no caso do incêndio na boate Kiss. Além de atropelar a competência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a decisão de Luiz Fux representa uma tentativa de reabrir, por vias tortas, a discussão sobre o início da execução da pena, discussão essa na qual o presidente do Supremo foi voto vencido. Sempre, mas especialmente em questões penais, o Poder Judiciário não pode estar refém das idiossincrasias de um magistrado. [dois comentários sem nenhuma pretensão de cometer ato antidemocrático, contra a Constituição Federal e contra as supremas instituições da República:
a - com grande frequência o STF, quase sempre em decisões monocráticas, tenta impor - na maior parte as tentativas são exitosas - medidas que invadem a competência de outros poderes da República, atropelam tribunais superiores e deixam a impressão do interesse do autor de mostrar que um supremo ministro manda, que ele pode fazer o que entender conveniente, que ele pode tudo. Quase sempre fica demonstrado o desinteresse em não constranger o alvo da sua medida, seja um outro poder ou uma instância inferior do Poder Judiciário;
b - em que pese a forma até afrontosa da decisão do ministro Fux, pelo menos demonstra que o ministro é favorável ao sadio entendimento de que lugar de criminoso condenado é na cadeia - regra que não tem tido o apoio da maioria de seus pares. Em português claro, lugar de bandido condenado - incluindo, prioritariamente, autores de crimes hediondos e os que assaltam cofres públicos é na cadeia = aguardando preso o resultado de eventuais recursos aos tribunais superiores. Prisão cujo regime deverá ser estabelecido nos exatos termos do art.33 do Código Penal, especialmente parágrafo 2º, alíneas a, b e c.]
Deve-se, em primeiro lugar, reconhecer que a decisão do TJRS não era isenta de controvérsia. Com as modificações trazidas pelo Pacote Anticrime (Lei 13.964/19), existe base legal para o início imediato da execução de penas iguais ou superiores a 15 anos aplicadas pelo Tribunal do Júri. No entanto, isso não significa por si só que a decisão do tribunal gaúcho esteja equivocada. Pode haver elementos no caso concreto que aconselham a espera do julgamento da apelação. Além disso, mesmo que eventualmente não represente a melhor aplicação da lei, decisão judicial não pode ser revogada por magistrado sem competência para atuar no processo.
Na decisão de Luiz Fux, há duas circunstâncias agravantes. Para suspender a decisão do TJRS, o presidente do Supremo valeu-se de uma interpretação que, em alguma medida, restringe o alcance protetivo do habeas corpus. Ou seja, para dar ao caso o encaminhamento de acordo com suas convicções pessoais (a prisão imediata dos réus), Luiz Fux precisou fragilizar esse importante instrumento de respeito às garantias fundamentais, previsto expressamente no art. 5.º, LXVIII da Constituição de 1988. A história nacional tem abundantes exemplos dos efeitos perniciosos desse tipo de limitação sobre as liberdades individuais.
Além disso, a decisão do presidente do Supremo tem um alcance que vai além do caso da boate Kiss. Toda a argumentação de Luiz Fux é um convite nada sutil para reabrir a discussão sobre o início do cumprimento da pena. A decisão tem, assim, um caráter de afronta não apenas à recentíssima jurisprudência do STF sobre os efeitos práticos da presunção de inocência, mas ao próprio caráter colegiado do Supremo.
Não há justiça possível sem um mínimo de estabilidade na jurisprudência das Cortes superiores, cujo papel é precisamente consolidar orientações, proporcionando segurança jurídica. Transformar cada novo caso em oportunidade para reintroduzir discussões há pouco superadas é uma atitude que não apenas deslegitima o Judiciário aos olhos da população, como contraria a própria razão de ser dos tribunais superiores.
Atropelos judiciais são especialmente graves em questões penais, sobretudo em processos de grande comoção popular, como é o caso do incêndio na boate Kiss. O respeito às regras de competência e o zelo com a jurisprudência são condições necessárias para que a justiça não se transforme em justiçamento. A prestação jurisdicional não é exercício de popularidade, tampouco teste da sagacidade do juiz, para avaliar se é capaz de fazer prevalecer sua opinião pessoal.
O Estado de S. Paulo - Editorial