Qual visão de mundo? Não é a volta do comunismo, inclusive por razões pessoais. E dinheiro. Esses ex-agentes da KGB, como o próprio Putin, acumularam fortunas quando o caiu o regime soviético e foram introduzidas reformas capitalistas. E acumularam não por sua capacidade como investidores. Foi roubo.
Primeiro, nas privatizações das grandes estatais. Aqueles funcionários tiveram acesso privilegiado a informações e a “moedas de privatização”, como títulos da dívida pública, vendidos a preço de banana e aceitos a preço de ouro na compra das estatais.
Depois, seguiram ganhando concessões “informais” de negócios nas áreas de energia, infraestrutura e bancos, principalmente.
Em resumo, um caso de capitalismo de amigos, levado ao limite.
Ao mesmo tempo, porém, foram de fato introduzidas reformas capitalistas, como o amplo direito à propriedade privada de bens e serviços, a proteção do lucro e abertura de negócios para o exterior. Há uma política econômica baseada em metas de inflação, controle das contas públicas e taxa de câmbio mais ou menos flutuante. Com empresas privadas e seus acionistas, a bolsa de valores de Moscou passou a ser um alvo de investidores ocidentais.
Nesse quadro, surgiram magnatas não oriundos do regime soviético, mas investidores e negociantes que souberam aproveitar oportunidades na Rússia e, depois, em toda a Europa ocidental. A formação de uma classe média cosmopolita foi a consequência direta – classe que se sente europeia.
Por que, então, o ideólogo de Putin tem tamanha bronca dos “valores
neoliberais”? Ele está se referindo aos direitos e liberdades
individuais. Na visão de mundo de Putin e sua turma, a democracia à
ocidental é ineficiente, incapaz de gerir a economia e a sociedade. Dito de maneira direta: oposição só cria caso e atrapalha o governo;
imprensa livre ?[que tal substituir o livre por militante? ] só serve para inventar fake news; as minorias são um
estorvo; liberdade partidária divide o povo. [infelizmente, com exceção do último item, o Brasil já é vitima das três primeiras mazelas.]
Essa é também a visão de mundo da China. Quando as democracias ocidentais enfrentavam dificuldades para lidar com crises financeiras e com a pandemia, o presidente Xi Jin Ping decretou o fim desse “modelo” e o sucesso do modo chinês de administrar um capitalismo de Estado.
De certo modo, Putin cometeu um erro ao acreditar demasiado nessa
versão. Para ele, as democracias ocidentais – com suas liberdades
dentro e fora dos países – jamais conseguiriam se unir para enfrentar
seu expansionismo. E foi o contrário, pelo que se vê até agora. Entre as principais
democracias, foi praticamente unânime a condenação da Rússia e o acordo
para a imposição de pesadas sanções econômicas ao governo, às empresas e
às pessoas.[o problema é que como bem lembrou o presidente do território da Ucrânia, uma guerra se faz com "munição", armas e soldados = comícios e ofertas de meios para fuga não resolvem guerras.]
Sim, o Ocidente também pagará um preço pelo bloqueio aos negócios russos, que estão mergulhados principalmente na economia europeia. Mas a ideia é provocar uma reação das elites empresariais russas e das classes médias. Até agora, as elites, em privado, manifestavam desagrado com o regime. Mas como estavam ganhando dinheiro e em expansão, bom deixa pra lá. Declaravam-se neutras e não se metiam em política.
Mas se a economia russa for levada a uma forte recessão e perda de riqueza, muita gente por lá vai cogitar: tudo isso para anexar a Ucrânia? Tudo isso para alimentar as ambições sanguinárias de Putin? Não existe a possibilidade de uma invasão na Rússia para derrubar o governo Putin. Seria iniciar uma guerra mundial nuclear. Mas é real a possibilidade de os próprios russos perceberem os danos causados pela turma do Putin.
Também é real a possibilidade de Putin endurecer ainda mais o regime ao se sentir pressionado internamente. Mas esse é um problema que os russos terão de resolver.
Carlos Alberto Sardenberg, jornalista