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terça-feira, 20 de julho de 2021

Daimocracia - Sugestão de uma humilde cidadã ao ministro Barroso e seus colegas progressistas


Bruna Frascolla

 
Ao abrir a primeira página desta Gazeta do Povo, fui apanhada de surpresa por uma manchetona segundo a qual um tal de Lira quer transformar o Brasil num país semipresidencialista – palavra que o meu corretor ortográfico grifa, sinal de que nem deve constar no Houaiss. Quem é mesmo esse Lira, com tanta importância para pautar, sozinho, os rumos deste país? Não votei nele. De certa forma, pode-se dizer que o elegi Presidente por meio de eleições indiretas, pois ele preside a Câmara federal. Voto em deputados federais, os quais, em conjunto, elegeram Lira presidente dessa casa legislativa. No entanto, se eu meio que elegi Lira, isso não faz dele um semipresidente.

Mas semipresidente é só metade da história. “Já que estamos discutindo reformas eleitorais, que a gente já possa prever que em 2026 mude definitivamente esse sistema no Brasil. Em vez de presidencialismo, para semipresidencialismo ou parlamentarismo”, diz Lira.

Já tivemos em 1993 um plebiscito para decidir se seríamos um país presidencialista, parlamentarista ou monarquista. Decidimos que seríamos presidencialistas. Mas, desde 2005, com o plebiscito do desarmamento, sabemos que plebiscito não vale nada mesmo. Sabemos que a plebe ignara não pode decidir coisa alguma, de modo que plebiscitos servem somente para o povo ter a chance dizer “sim” e facilitar a vida de progressistas abnegados que se esforçam para levar este país rumo à Idade da Razão. Quando o resultado é “não”, aí cabem uns tapinhas condescendentes na cabeça do povo e a negligência do plebiscito.
Ideia de Barroso




Tendo aprendido isto muito bem, fiquei aliviada ao ver que a ideia na verdade era do ministro Luis Roberto Barroso. Com Barroso, sim, venho aprendendo muitas coisas sobre a Constituição e a vontade popular.


Quem é o responsável por turbinar o fundão eleitoral: governo, oposição ou Centrão?

Nos Estados Unidos,  juízes progressistas usam o fato de a Constituição ser do século XVIII para dar tratos à bola, atualizar o espírito das leis para o século XX e, depois, para o século XXI. No Brasil, cuja Constituição é de 1988, detalhadíssima e subscrevente da Declaração Universal dos Direitos Humanos feita no pós-guerra, usa-se da mesma estratégia.

Eu achava meio esquisito. Até entender que 1988 é um tempo remotíssimo, talvez mais próximo do século XVIII do que do século XXI. Afinal, em 1988, se um caminhoneiro barbado chegasse ao cartório dizendo que se autodeclarava mulher, seria tido por doido. No século XXI, entende-se (o STF entendeu) que o eventual barbado não só não é doido como é uma violação da dignidade humana negar-lhe a liberdade de determinar o próprio sexo, aliás, o próprio gênero. Pois o homem, digo, a pessoa do século XXI é tão evoluída, tão próxima dos anjos, que nem tem mais sexo: tem gênero.

A marcha do progresso caminha inelutavelmente para o futuro. Se a plebe não quiser acreditar em espectro de gênero, caso se apegue à ideia primária de que a humanidade se divide em machos e fêmeas (homem e mulher), tal como os demais mamíferos (macaco e macaca, cachorro e cadela, gato e gata, e assim por diante, excetuadas as onças, pois, sendo sempre do gênero feminino, na certa são todas lésbicas, reproduzindo-se quando uma onça transgênero engravida uma onça cisgênero), se a plebe se apegar a noções tão atrasadas e obscurantistas, dizia eu, é preciso que um Guia Supremo nos pegue pela mão e nos leve ao futuro.
 

Constituição com cachimbo na boca
Assim, na democracia do século XXI, cabe ao Supremo, munido de sua alta hermenêutica e profunda inteligência, decifrar o espírito da Constituição. Se nós, simplórios, líamos que nenhum brasileiro pode ser discriminado em função de raça e entendíamos que não pode ter cota racial, o Supremo interpreta e entende diferente. Se lemos que há liberdade de ir e vir, o Supremo mostra que não é bem assim.

O curioso nisso tudo é que, tendo sido redigida em 1988, por gente atrasada, a Constituição ainda assim tem um espírito progressista que só os muito expertos (sic) conseguem decifrar. A única explicação que consigo divisar para isso é a de que o Espírito da Constituição é uma entidade mágica que baixa, dá uns tragos no cachimbo e pontifica em privado para os sacerdotes do Supremo Tribunal Federal. Ele dizia uma coisa aos constituintes e agora diz outra aos ministros.

Assim, minha sugestão para os ministros do STF é que deixem Lira de lado. Quem pode tanger o povo não pode tanger o Congresso por quê? Joguem búzios, consultem o Espírito da Constituição e decidam-se logo pelo semipresidencialismo. Aproveitem e perguntem logo pelo nome do próximo semipresidente, pois no século XXI democracia virou daimocracia, com o poder na mão de um daimon (espírito) progressista.

Bruna Frascolla, colunista - Gazeta do Povo - VOZES  

 

quarta-feira, 13 de maio de 2020

Os palavrões no Conselho de Governo - Elio Gaspari

Folha de S. Paulo - O Globo

O bolsonarês humilha aqueles que votaram no capitão em nome dos bons costumes

Quando Sergio Moro pôs na roda a questão do vídeo da reunião do Conselho de Governo de 22 de abril, sabia que havia ali uma bala de prata capaz de provar que Jair Bolsonaro queria trocar o diretor da Polícia Federal para blindar os interesses políticos de sua família. Ele sabia também que a bala continha outro material. Ao chegar ao Planalto, com pompa monarquista, o capitão chamou de Conselho de Governo aquilo que se conhecia como reunião do Ministério. Reunindo-o, ele presidiu uma conversa de botequim, e Moro mostraria isso.

[os que votaram no capitão em nome dos bons costumes não se sentem humilhados.
Alguns dos motivos:
- ainda não deixaram o presidente Bolsonaro governar;
- o número de f. d. p existente, continua tentando manter a MORAL e os BONS COSTUMES longe do Brasil;
- um país que cultua a ideologia de gênero torna mais difícil o combate às IMORALIDADES e BONS COSTUMES;
- um país em  que o seu presidente é execrado por ter postado um vídeo repudiando a prática do 'golden shower' em via pública, decididamente está longe de ser tornar um modelo em BONS COSTUMES.]


A divulgação desse vídeo será também um espetáculo de falta de compostura e de asneiras. Outro dia a secretária de Cultura, Regina Duarte, disse que parou de ler os livros de Olavo de Carvalho porque ele usa muitos palavrões. No governo que ela louva, o vocabulário do doutor Olavo é o de um sacristão.  Alguns presidentes respeitavam seus interlocutores. Michel Temer, Fernando Henrique Cardoso e José Sarney falam como frades. Não se pode dizer o mesmo de Dilma Rousseff e Lula, mas nenhum deles disse palavrão em reunião ministerial. Conhecem-se os áudios das reuniões do Conselho de Segurança Nacional que decidiram baixar o Ato Institucional nº 5 (Costa e Silva) e o Pacote de Abril (Ernesto Geisel). Neles não há palavrões.

O primitivismo de Bolsonaro vai além do uso de expressões chulas, transborda para a própria maneira como preside uma reunião de ministros e como lida com sua equipe de renomados “técnicos”. Em certa ocasião ele manifestou tamanha curiosidade por detalhes de caso

s de violência que um dos titulares achou melhor mudar de assunto. O clima de feijoada permite que o chanceler Ernesto Araújo exponha (em bom português) suas teorias lunáticas em relação à China ou que alguém resolva qualificar a genealogia de ministros do Supremo Tribunal Federal. É a bagunça bolsonariana. Nela o presidente libera o funcionamento de academias de ginástica e salões de beleza sem ouvir seu ministro da Saúde. Afinal, ambos sabem com quem lidam.

O vídeo da reunião de 22 de abril é um exemplo da capacidade de autocombustão do governo. Já com Moro fora do governo, Bolsonaro disse que divulgaria seu conteúdo: “Mandei legendar e vou divulgar”. Falou o que lhe veio à cabeça, mas dias depois a Advocacia-Geral da União pediu ao ministro Celso de Mello que reconsiderasse a decisão de pedir a gravação porque na reunião foram tratados “assuntos potencialmente sensíveis e reservados de Estado”. Parolagem, pois podia ter pedido para embargar esses trechos. Essa é a prática de governos sérios, mas quem embarga trechos assina embaixo e se responsabiliza pelo ato.

Diante da blindagem absurda, a AGU recuou e disse que se contentava em entregar uma versão com trechos embargados. Não deu certo. Sergio Moro e seus advogados não aceitaram o atalho, argumentando que não compete ao governo selecionar provas. Caberá ao ministro Celso de Mello decidir se torna público todo o vídeo ou partes dele. Se Moro quisesse apenas provar que Bolsonaro pressionou-o para trocar o diretor da Polícia Federal, o embargo seria neutro e justificável. Ele também queria mostrar como funciona a muvuca em que se meteu.

Folha de S. Paulo - O Globo - Elio Gaspari, jornalista