A lógica mafiosa subverteu a ‘independência harmoniosa’ entre Poderes no Rio, com décadas de interferências indevidas no Executivo, no Legislativo e no TCE
Assistiam
ao “Jornal Nacional”, quando a garota de 17 anos perguntou: “Pai, por que
quando uma pessoa vai presa vocês não fazem nada, e só quando um deputado é
preso é que vocês podem dizer se ele pode ir preso ou não?” O
deputado André Correa (DEM), de 53 anos, contou ter achado a questão “difícil”:
“Porque é assim que está na Constituição”.
Ex-presidente
do Conselho de Ética da Assembleia, Correa votou na última quinta-feira pela
libertação dos deputados Jorge Picciani, Paulo Melo e Edson Albertassi. Como
outros, ancorou seu voto na recente interpretação do Supremo sobre a
“independência harmoniosa” que rege o princípio constitucional da separação dos
Poderes. É da Casa
legislativa — decidiu o STF —, a resolução sobre a prisão ou medida cautelar de
parlamentares. Redigida de maneira dúbia sobre sua fronteira de aplicação, será
preciso esclarecer se foi específica para o Congresso ou se é extensiva às
assembleias e câmaras. [o parágrafo 1º do artigo 27 da Constituição Federal - que vale mais que qualquer interpretação do Supremo (cabe ao STF interpretar o que não está claro, mas, aquele dispositivo constitucional é de clareza solar) não deixa dúvidas que o que vale no artigo 53 da CF para os membros do Congresso Nacional vale também para os deputados estaduais.]
No caso
do Rio, porém, a luz do sol expõe um problema que não está na tese, mas na
realidade: os processos da Operação Lava-Jato demonstram décadas de
interferências indevidas no Executivo, no Legislativo e no Tribunal de Contas
em benefício de empresas privadas contratadas para serviços de obras e de
transporte. O que
diferencia o Rio no mapa nacional da corrupção é a comprovação da captura e
submissão dos Poderes do estado a redes privadas de influência. Empresas
conquistaram hegemonia no orçamento público, nos últimos 20 anos, mediante
pagamento de propinas — em dinheiro vivo, entregue em carro-forte nos
escritórios montados exclusivamente para lavagem do patrimônio de políticos e
burocratas de aluguel.
Sobram
documentos e testemunhos sobre essa lógica de máfia nas 25 ações penais abertas
nos últimos 17 meses — uma a cada três semanas, e 60% delas contra o
ex-governador Sérgio Cabral. No repertório de evidências destaca-se a história
da tomada do poder no Estado do Rio pelos seis sindicatos empresariais que
compõem a Fetranspor.
Administradora
de 3,5% da receita dos bilhetes de ônibus e do vale-transporte, coletava
dinheiro nas garagens para distribuição de propinas no Executivo e no
Legislativo. Havia uma remuneração fixa e um variável (40%) pelos benefícios
obtidos em incentivos fiscais, no aumento anual de tarifas e na apropriação do
saldo do bilhete único expirado. O suborno incluía a defesa do setor sobre cada
vírgula de 50 projetos na Assembleia e, também, nas auditorias do Tribunal de
Contas estadual, como mostra a manobra para nomear o deputado Edson Albertassi
ao Tribunal de Contas, na vaga do ex-presidente do TCE Jonas Lopes, que virou
delator. O governador Luiz Fernando Pezão diz ter sido surpreendido no
emparedamento. O procurador-geral do estado, Leonardo Espíndola, insurgiu-se e
renunciou. Acabou detonando a prisão dos deputados.
O cartel
pagou propinas até maio passado. Dois meses antes, recebeu do prefeito Marcelo
Crivella mais isenções fiscais: as empresas deixam de pagar R$ 71,7 milhões
neste ano, R$ 75,6 milhões em 2018 e R$ 79,3 em 2019. Caros,
ruins e perigosos, os ônibus simbolizam a captura do Estado por grupos
políticos a serviço de interesses privados. No Rio, a lógica mafiosa subverteu
a “independência harmoniosa” entre Poderes.
José Casado - O Globo