Sacrifício de animais não é compatível com a
Constituição de 1988
Esta
semana uma leitora do blogue do GERT
em Porto
Alegre (RS) escreveu-me a propósito da discussão do PL 21/2015 na CCJ da
Assembleia Legislativa daquele Estado. O projeto de lei, de autoria da deputada
Regina Becker Fortunati (PDT), segundo me informou a leitora gaúcha, altera o Código Estadual de Proteção aos Animais e revoga
uma lei estadual de 2004 que permite o abate de bichos em cerimônias
religiosas. A leitora, então, conhecedora dos meus estudos como
constitucionalista no campo dos Direitos Fundamentais e, particularmente, no
campo do Controle de Constitucionalidade, questionou-me acerca do meu
posicionamento sobre esse assunto. Desse modo, instigado pela oportunidade do
debate, decidi tecer algumas breves observações sobre o assunto.
Na ordem constitucional
brasileira, não se pode admitir o desprestígio desarrazoado ao valor vida, seja a vida humana ou a dos demais outros animais. Sob a égide da CF/88, deve-se ponderar os valores
liberdade de culto versus direito à vida. Nesse confronto, entendo que o
valor "vida
dos animais" deve preponderar.
Valendo-me
duma exegese constitucionalizada do Direito Ambiental, entendo que o art. 225 da CF/88 ("Art. 225. Todos têm direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à
sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever
de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações") não comete
à vida animal um valor menor em relação à vida humana.
Assim, analisada a
liberdade de culto, não se poderia admitir que as práticas religiosas pudessem,
a pretexto de manutenção da cultura de um povo, adotar ações que colidam com os
valores substanciais do Estado brasileiro - entre os quais está a proteção do
meio ambiente e, consequentemente, da vida dos animais. A própria CF/88, escudada no respeito a todas as formas de vida,
tratou de proibir as práticas que coloquem em risco a função ecológica da fauna
ou da flora, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais à
crueldade (art. 225, § 1º, VII).
É nesse sentido que
orienta a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Com efeito, em
numerosos precedentes relacionados a situações específicas em que fica
configurado o embate entre as manifestações culturais e o meio ambiente, o STF tem entendido que o conflito de
normas constitucionais resolve-se em favor da preservação do meio ambiente quando as práticas culturais ou esportivas condenam os
animais a situações degradantes.
Foi o raciocínio utilizado, por
exemplo, no julgamento da ADI 2514, na
qual o STF, em 2005, considerou inconstitucional -
por ofender o art. 225, § 1º, VII, da CF/88 - a Lei Estadual 11.344/00, oriunda do Estado de Santa Catarina, que
tinha previsto normas para a criação, exposição e realização de competições
entre aves combatentes da espécie "Galus-Galus",
a chamada "briga de galo".
Ficou vencida, dessa maneira, a tese que defendia a constitucionalidade da lei
estadual com base numa suposta "cultura
arraigada" da população catarinense, simpática às brigas de galo. Em
outro precedente importante, assentado no julgamento do RE 153531, quando se
discutiu a polêmica "farra do
boi" realizada no mesmo Estado de Santa Catarina, o STF fez prevalecer
novamente a preservação da fauna.
Consoante decidiu a
Corte nesse julgado, os atos que submetem os animais à crueldade não podem ser
considerados
"inocentes
manifestações culturais de caráter meramente folclórico". Acrescente-se
ainda que a jurisprudência do STF tem entendido que a proteção jurídica dispensada à fauna abrange tanto os animais
silvestres quanto os animais domésticos ou domesticados, visto que a
cláusula constitucional que veda a submissão de animais à crueldade é genérica
(STF, ADI 1856/RJ, Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, j. 26/05/2011).
O exame
dessas decisões deixa claro que o Supremo Tribunal
Federal tem, acertadamente,
interpretado as normas do Direito Constitucional Ambiental com vistas a assegurar a máxima efetividade
do direito fundamental à preservação da integridade do meio ambiente. Tal
preservação alcança uma dimensão ampla, a abranger o meio ambiente nos seus
múltiplos aspectos: natural, cultural, artificial e até mesmo o laboral.
É
assim que a Suprema Corte brasileira tem
rechaçado com veemência quaisquer leis estaduais
que tenham por objetivo viabilizar práticas de notória crueldade contra animais
- o que constitui um potente desafio ao direito à vida e ao meio
ambiente, ambos inscritos na Constituição.
Ora, o
raciocínio esposado pelo STF nas ações diretas de inconstitucionalidades, que derrubaram todas as leis que regulamentavam práticas
odiosas como "brigas de
galo" em nosso País, norteou-se pela conclusão de que essas "competições" de animálias são incompatíveis com a Constituição de
1988, na medida em que os animais são vítimas de maus tratos e toda sorte
de tormentos promovidos pelos seus organizadores.
Logo, tais práticas infringem, a um só tempo,
normas do ordenamento constitucional e da legislação ambiental, no que fica
suficientemente caracterizado o
comportamento delinquencial altamente reprovável e, consequentemente,
impossível de ser legitimado em textos legais.
Forte
nesses argumentos, entendo que o mesmo raciocínio que conduz ao juízo de
nulidade das leis que prevejam competições baseadas na crueldade contra os
animais deve prevalecer em sede de práticas de cultos religiosos. Não se pode admitir que, a pretexto de
exercício da liberdade de culto, a vida de um animal possa vir a ser
legitimamente suprimida. Tais práticas, ao submeterem espécies da fauna ao
sacrifício, extrapolam a liberdade de culto, que não é absoluta, e em nada se
harmonizam com o projeto civilizatório pretendido pela Constituição de 1988.
Portanto,
a virtual edição lei do Estado do Rio Grande do Sul, ao vedar o sacrifício de
animais em cultos religiosos, não apenas
é perfeitamente constitucional como ainda contribui decisivamente para a
preservação do meio ambiente e do direito à vida como um todo.
Graduado
em Direito pela UFPA. Especialista em Direito Constitucional, Direito
Tributário e Ciências Penais. Ex-Advogado. Atualmente atua como Analista
Jurídico do Ministério Público. Formado em música erudita pelo Conservatório
Carlos Gomes.
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