O manifesto que há pouco foi colocado em circulação por um círculo de
100 advogados, incluindo defensores de réus processados por corrupção e
outros crimes na Operação Lava Jato, com a intenção de denunciar o que
os seus autores descrevem como uma série de agressões ao direito de
defesa, não é, nem nunca chegará a ser, o que parece. Pelo que está
escrito ali, com o amparo de assinaturas ilustres, o documento parece um
protesto contra a arbitrariedade do Poder Judiciário e um grito em
favor das liberdades individuais do cidadão brasileiro ─ ou, pelo menos,
foi isso que pretendeu parecer.
O que
acabou realmente sendo foi outra coisa: uma declaração de guerra contra a
aplicação da Justiça no Brasil de hoje. Os advogados em questão acusam
os condutores dos processos penais da Lava Jato de parcialidade contra
os réus, violação dos códigos legais, desrespeito ao exercício do
direito de defesa ─ e sustentam que esses delitos são uma ameaça para o
país e para “o Estado de direito”. Não funcionou. Só conseguiram deixar
claro que seu único interesse era fazer pressão em favor dos próprios
clientes.
O que chama atenção neste caso, à primeira vista, é a baixa qualidade
do texto levado a público. Não é citado ali nenhum fato concreto de
arbitrariedade por parte do juiz Sergio Moro, titular da 13ª Vara
Criminal Federal de Curitiba, ou do Ministério Público. Não há nenhuma
menção a uma realidade fundamental: a de que os advogados da Lava Jato
já apresentaram cerca de 300 recursos contra as decisões do juiz e quase
todos foram negados pelos três diferentes tribunais superiores que
julgam os seus despachos. Não há o mais remoto sinal de que exista algo
parecido com uma ideia naquilo tudo que escreveram.
Mas o que há de pior
no documento é algo que não está escrito ─ é a sua tentativa
desesperada de empurrar o Brasil de volta a um estilo de Justiça que
começa a morrer. É a Justiça que está aí desde sempre, desenhada peça
por peça para garantir a impunidade de réus com influência, posição
social e, sobretudo, muito dinheiro para gastar em suas defesas.
Sua
essência é impedir a apreciação do mérito real dos fatos no julgamento
dos processos criminais ─ e obrigar, em vez disso, a que todas as
decisões dos juízes obedeçam a uma complicadíssima malha de normas
descritas como “técnicas”, que nada têm a ver com aquilo que
efetivamente aconteceu e se interessam apenas em criar obstáculos
artificiais para possíveis condenações. É a Justiça dos prazos, das
formalidades, da burocracia, das regrinhas, das minúcias extremas dos
códigos e leis processuais, das possibilidades praticamente sem limites
de adiar decisões e ir empurrando tudo com a barriga até o Dia do Juízo
Universal. É o triunfo do que os juristas chamam de “chicana”.
Advogados experientes e atentos às realidades do Brasil de hoje vêm
observando há bom tempo, desde o início da Operação Lava Jato (e até
mesmo antes, a partir das condenações do mensalão), que mudanças
importantes estavam começando a aparecer na Justiça Penal brasileira.
Estava ficando mais difícil para os réus, advertiam eles, confiar
cegamente nos confortos da Justiça velha. As causas, cada vez mais,
passavam a se interessar por provas e fatos, em vez de truques
processuais. A Justiça começava a exigir que as defesas apresentassem
argumentos verossímeis e baseados na lógica, em vez de alegar qualquer
disparate e desafiar a acusação a apresentar “prova em contrário”.
Foi
aparecendo a necessidade de se defender com argumentos em vez de
discursos; foi se esvaziando a importância do palavrório, do latinório,
do jogo para a plateia. Os advogados do manifesto, ao que parece, não
prestaram atenção a nada disso. Agora, diante das dificuldades que a
nova Justiça vem colocando para os réus nos processos de corrupção,
querem salvar seus clientes pregando a volta a um sistema em fase de
demolição.
Tudo o que conseguiram até agora foi tornar ainda mais forte a
posição do juiz Sergio Moro. É natural: quem pode levar a sério um
documento em que se escreve que a Justiça no Brasil de hoje é pior que a
do regime militar? Isso não é argumento; é uma falsificação maligna dos
fatos, ao ignorar que na verdadeira Justiça da época 400 pessoas foram
mortas sem passar por nenhum processo, segundo as estimativas mais
citadas, e que o governo podia demitir juízes, fechar tribunais e cassar
ministros. Os advogados do protesto dizem que as ações penais contra a
corrupção são um “retrocesso de vários séculos”. Confundem tudo. Quem
quer o retrocesso são eles.
Fonte:J. R. Guzzo - Publicado na versão impressa de VEJA
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