Presidente
coleciona decisões erradas e aliados encarcerados
O dono da casa estava feliz. Reunira na sala 37
senadores, nada
menos que 46% dos votos disponíveis no plenário
do Senado, sem contar o próprio. Dividiam o espaço com 18 ministros na
celebração do favoritismo da aliança PT-PMDB para a eleição presidencial.
Só faltava a candidata, amiga do
anfitrião, sua companheira de caminhadas matinais. Saíam cedo, ela disfarçada com
chapéus de abas longas e óculos escuros, guiando o cão Nego, legado de José
Dirceu, seu antecessor na Casa Civil.
Dilma Rousseff (PT) não quis ser
fotografada em festa com os aliados. Fez circular uma justificativa banal: precisava
treinar para o debate na Rede Bandeirantes, duas noites à frente.
Coube ao
vice Michel Temer (PMDB) comandar o brinde. Com o peculiar sorriso enviesado, segurou o microfone: —
Estamos todos em boa companhia, partilhando o pão. A partir da partilha do pão
que ora aqui fazemos, nós queremos partilhar o próximo governo da Dilma.
Lá se foram cinco anos e oito
meses desde o almoço daquela terça-feira 3 de agosto de 2010 no Lago Sul, em Brasília. O anfitrião Jorge Afonso “Gim” Argello, ex-senador pelo PTB,
agora ocupa uma cela em Curitiba, onde negocia delação premiada sobre
múltiplos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro em campanhas eleitorais. A maioria do Senado se diz disposta a
despejar hoje Dilma do Palácio do Planalto, com um processo de impeachment.
O vice Michel Temer, de novo, acena aos senadores com a partilha do próximo
governo.
É o desfecho de uma crise que
começou a ser formatada no gabinete do presidente da República, em janeiro de
2003. Lula
degustava a primeira semana no poder em conversa com os ministros José Dirceu
(Casa Civil), Antônio Palocci (Fazenda) e Miro Teixeira (Comunicações).
Mostrou-se preocupado com o novo Congresso, que tomaria posse no mês seguinte.
O antigo líder sindical operário
chegara ao Planalto com 52 milhões de votos, 61% do total, unindo
grupos antagônicos. Lula queria dominar o Legislativo. O PT elegera 91
deputados e 14 senadores. A máquina eleitoral turbinada pelo generoso financiamento empresarial permitiu-lhe crescer 57% na Câmara e 75% no
Senado. Essa proeza, entretanto, apenas deixava o partido do presidente
próximo do PMDB e do PFL (hoje DEM) e do PSDB. Juntos, os três reuniam 44,5% dos votos da Câmara e 60% do Senado.
Ganhar eleição é difícil,
governar, muito mais. O
recém-eleito sonhava com hegemonia legislativa para seu projeto de poder,
moderadamente reformista. Lula perguntou “como
é que se organiza” a base majoritária de congressistas. Dirceu saiu na
frente com uma evocação do enunciado dos “300
picaretas” que Lula usara anos antes, em pejorativo aos parlamentares
federais: — Com esse congresso burguês,
maioria legislativa se constrói em cima do orçamento.
O presidente escutava, olhando na
direção das próprias meias. A proposta escondia e mistificava, tanto quanto revelava: usar cargos e
fatias do orçamento federal e das empresas estatais para compor a “maior base parlamentar do Ocidente”, na
definição do chefe da Casa Civil.
Palocci e
Miro indicaram a alternativa de alianças a partir de projetos específicos. Sugeriram
começar pelo “ajuste fiscal”, com
potencial para atrair uma fatia da oposição, o PSDB. Ao perceber o aval de Lula a Dirceu, desistiram.
Sucedeu-se romaria ao quarto
andar do Planalto. Ali, o secretário-geral do PT, Silvio Pereira, e o tesoureiro do partido,
Delúbio Soares, loteavam cargos e pedaços do orçamento público. Ao lado
do gabinete presidencial, o chefe da Casa Civil homologava os acordos,
auxiliado por Fernando Moura, mais conhecido como “FM”. Os neoaliados do
Planalto eram alvo de provocações nos corredores do Congresso: — O deputado anda ouvindo muita rádio
‘‘FM’’.
Semanas
atrás, na prisão, Moura estimou ter participado com
Silvio Pereira da escolha e nomeação de
32 mil pessoas para cargos no governo e em empresas estatais no primeiro
mandato de Lula. Entre eles, diretores da Petrobras como Renato Duque,
encarcerado há um ano.
Moura, Pereira e Delúbio ajudaram
a moldar a era Lula em negociações de quantias e percentagens superlativas. Eram operadores de uma mecânica
testada na campanha eleitoral.
Numa
noite de junho de 2002, por exemplo, Delúbio
escoltara o chefe Lula, o vice José Alencar e Dirceu à casa do deputado Paulo
Rocha (PT-PA), em Brasília. Lá, encontraram Valdemar Costa Neto, líder do
PR. “Boy”, como é conhecido, detalhou
a reunião à revista “Época” em agosto
de 2005. “Fomos para o quarto eu, o
Delúbio e o Dirceu. Comecei pedindo uns R$ 20 milhões...”
Levou metade. Como outros, mais tarde ganhou
lotes de postos-chave em departamentos (como
o Dnit, de obras de infraestrutura), representações (Trabalho e Receita Federal) e diretorias de estatais (Infraero, Itaipu e Correios).
A
Petrobras era o “filé”, na definição
de Roberto Jefferson, líder do PTB. Foi
partilhado por dois José: Dirceu, do PT, e Janene, do PP. Logo, somaram-se
líderes do PMDB. A linha de montagem da “base
aliada” possuía algo de poético aos olhos de Dirceu: “É um bolero, dois pra lá e dois pra cá”, repetia. “O modo petista de governar tem força”.
Lula desfrutava. Numa noite de quinta-feira, 14
de outubro de 2004, foi com Dirceu à casa de Jefferson
renovar promissórias com o PTB. Partilharam codornas recheadas e um Don
Laurindo, de Bento Gonçalves (RS). O anfitrião exercitou a voz de barítono em
peças de Tom Jobim — “Eu sei que vou te
amar”, entre outras. À saída, o presidente ajeitou a gravata listrada de
cinza, preto e branco, e disse aos jornalistas, olhando para Jefferson: — Eu daria a ele um cheque em branco, e
dormiria tranquilo.
Oito meses depois, Jefferson
achou que o governo Lula queria tomar-lhe o PTB. Denunciou a existência do
Mensalão em entrevista à jornalista Renata Lo Prete e refugiou-se na serra
fluminense. Estava a 1.300 quilômetros
do Planalto, mas o eco do escândalo sitiou sua casa, no meio do Caminho
Novo (atual
BR-040).
Numa
madrugada fria rascunhou uma auto-incriminação, para legitimar a própria
denúncia. Seguia a lógica do drama, lapidada na tribuna parlamentar e na
advocacia criminal. Sentiu-se como Ródion, personagem de Dostoiévski em “Crime e castigo”, contou tempos depois.
O
barítono Jefferson escreveu um discurso catártico ao som de “Butterfly”: “Você se lembra da paixão pelo suicídio na
ópera? Pois é, sem tragédia, sem sangue e sem ódio, o povo não gosta”.
Voltou a
Brasília, foi à Câmara e arrastou Lula e
o PT para uma voragem de sete anos de crise, resumidos num processo com 38
réus julgados pelo Supremo Tribunal Federal em 53 sessões.
Mesmo
acuado, Lula viu-se agraciado pelo vento
a favor na economia, com uma súbita alta de 60% nos preços das matérias-primas
exportadas. Reelegeu-se com 60,1% dos votos e
avisou à mulher, Marisa, que mudaria a rotina no Alvorada. Passou a
guardar um lugar à mesa no jantar de domingo para uma convidada: Dilma
Rousseff, chefe da Casa Civil.
Ela estivera no centro de todas
as crises do governo Lula, desde o Mensalão. Dona de uma biografia incólume às urnas e, em
parte, dedicada à luta pela substituição de uma ditadura
(militar) por outra (do proletariado), foi apresentada numa campanha
eleitoral hollywoodiana, na maior parte custeada por fornecedores da Petrobras,
premiados com obras sem projeto e custos
multiplicados por 10, como foi o caso da refinaria de Pernambuco, nascida
de uma conversa de Lula com Hugo Chávez, presidente venezuelano.
Um único comício organizado pelo governo,
em Angra dos Reis, custou US$ 25 milhões. Lula comandou o batismo
antecipado da plataforma P-57 durante um par de horas, e a embarcação voltou
rebocada, inacabada, ao estaleiro. Dilma nem apareceu. Ganhou com 56% dos votos.
Dilma tentou manobras, como
alijar o PMDB do governo, e acabou no isolamento. Perdeu a bússola quando viu as
ruas tomadas por multidões em protesto. Insistiu no projeto de reeleição em
2014, que começou atropelado pelas evidências de uma tempestade política
perfeita. A prisão do diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa, em março, expôs
a monumental corrupção na Petrobras, já combalida por má gerência e
endividamento recorde (US$ 500 bilhões). As investigações levaram ao coração do PT.
Conseguiu
ser reeleita com 51,6% dos votos, num ambiente de recessão, inflação alta e
maquiagens nas contas governamentais para ocultar déficits expressivos. A oposição passou um ano inteiro pregando o impeachment. Sem êxito até dezembro passado,
quando o presidente da Câmara aceitou o pedido. Ela retaliou, demitindo os
aliados do deputados Eduardo Cunha (PMDB-RJ) que ainda preservara no governo,
sobretudo no comando da Caixa.
O catalisador político surgiu no
final de fevereiro a partir de suas conversas com Lula, gravadas por ordem
judicial. Ao
tentar proteger o criador, com nomeação para o ministério, sujeitou-se à
acusação de obstrução da Justiça. Ficou
entre a renúncia e o impeachment. Hoje, escolherá a porta de saída.
Fonte: José Casado, jornalista – O Globo
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