Você leu corretamente! Em 05/05/2016, foi publicada no DOU a Lei 13.281/2016, que
altera o Código de Trânsito Brasileiro (CTB). Dentre outras disposições, no mínimo,
temerárias, o novo Diploma Legislativo acrescenta o art. 165-A ao CTB, cuja redação é a seguinte:
Art. 165-A. Recusar-se
a ser submetido a teste, exame clínico, perícia ou outro procedimento que
permita certificar influência de álcool ou outra substância psicoativa, na
forma estabelecida pelo art. 277: Infração – gravíssima; Penalidade – multa
(dez vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses; Medida
administrativa – recolhimento do documento de habilitação e retenção do
veículo, observado o disposto no § 4º do art. 270. Parágrafo único. Aplica-se
em dobro a multa prevista no caput em caso de reincidência no período de até 12
(doze) meses.
O
dispositivo transcrito acima é tão afrontoso ao ordenamento jurídico que fica
até difícil iniciar sua análise: farei, perfunctoriamente, apenas para demonstrar, em pontos rápidos, a
extensão do absurdo. Em primeiro lugar,
evidente é a contrariedade ao princípio da não
incriminação, aquele que tem até um provérbio latino que o designa desde
os tempos do direito romano (nemo tenetur se
detegere), segundo o qual
ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo e, no Brasil, é alçado à
categoria de direito fundamental (art. 5º, LXIII, CF) e de baliza do ordenamento jurídico pátrio (será que o legislador sabe o que é isso?
Talvez precise assistir a uns vídeos do YouTube).
Bem, se o raciocínio é o de que agora virou
festa, uma vez permitida pelo próprio STF (e uma pequena lágrima novamente escorre...) o vilipêndio à presunção de inocência (art. 5º, LVII, CF vs.
HC 126.292/SP), então parece que estamos
todos pagando pelo evento, mas fomos barrados na entrada: só que, desta vez,
o latrocínio cometido contra a Constituição decorreu da combinação entre os atos dos Poderes Legislativo e
Executivo. Então, ainda há esperança...
(será?). Prosseguindo, note-se que há outra afronta
constitucional: à proporcionalidade.
É que, agora, a sanção administrativa
àquele se nega ao bafômetro ou qualquer exame de alcoolemia, fica idêntica
àquela que se impõe ao agente que efetivamente dirige embriagado, conforme se
depreende da leitura do art. 165 do CTB:
Art. 165. Dirigir sob a
influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine
dependência: Infração – gravíssima; Penalidade – multa (dez vezes) e suspensão
do direito de dirigir por 12 (doze) meses; Medida administrativa – recolhimento
do documento de habilitação e retenção do veículo, observado o disposto no § 4º
do art. 270
da Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997 – do Código
de Trânsito Brasileiro. Parágrafo único.
Aplica-se em dobro a multa prevista no caput em caso de reincidência no período
de até 12 (doze) meses.
Observe que o motorista se
encontra em uma encruzilhada: ou se nega (tendo seu veículo e seu documento
apreendidos, seu direito de dirigir suspenso, além da multa, conforme o art.
165-A do CTB) ou se submete (podendo
responder pelo crime do art. 306 do CTB se, por exemplo, acabou de fazer um bochecho com um enxaguante bucal
com álcool). Então,
apenas para exemplificar — mas, vou
exemplificar na Suécia, porque tenho certeza de que algo assim jamais
aconteceria no Brasil —, imagine a seguinte situação: Ribamar (nome sueco nativo),
antes mesmo de entrar em seu próprio veículo, é parado
pelo agente de trânsito, sendo-lhe exigida a realização do teste do bafômetro
(lembrando que os agentes suecos podem
ter interesses pecuniários ao agir desta maneira).
Ribamar,
como bom cidadão sueco, informa ao agente de trânsito que somente estava a
caminho do seu automóvel para buscar um objeto que lá deixara e que não se
submeterá ao exame simplesmente porque não estava dirigindo, além de ter
consumido um sorvete, há poucos minutos, adornado com cerejas em calda (e o licor da guloseima continha álcool).
Agora, o agente de trânsito sueco
pronuncia o dilema: “Ou você faz o bafômetro ou terei de
apreender o veículo, o documento de habilitação, suspender seu direito de
dirigir e aplicar-lhe uma multa”.
E Ribamar, então, deve decidir se prefere
combater a presunção de legalidade do ato praticado pelo agente na seara
criminal ou no âmbito administrativo: em qualquer das
hipóteses, incumbirá a Ribamar o ônus de demonstrar/provar que sequer estava
dirigindo. E atire a primeira pedra o sueco que nunca se sentiu
constrangido quando, parado pela blitz de trânsito, teve de se submeter ao
teste do bafômetro diante de sua família (que
assistia ao espetáculo de dentro do carro), mesmo sabendo que não ingerira
qualquer substância: vale sublinhar que, diferentemente
da sentença judicial, o agente de trânsito pode parar qualquer sueco
aleatoriamente, sem que haja qualquer suspeita do cometimento de crime
ou infração (e não precisa explicitar as
razões de ter parado o condutor sueco). Ufa! Ainda bem que o Brasil não é a Suécia!
Voltando
ao direito brasileiro, vale lembrar que a jurisprudência pátria já vem
decidindo que, para a configuração do
crime do art. 306 do CTB, não é
indispensável a realização do teste do bafômetro, podendo a prova testemunhal
servir ao propósito: então por que raios
há uma sanção específica à simples negativa de submissão ao exame? Será que
vamos aplicar uma sanção também aos pais que se negarem ao teste de DNA, além
da presunção de paternidade? Então invertemos todo o
sistema e a inocência agora é que precisa ser provada?
Basta a acusação,
não havendo prova cabal em contrário, para a condenação? E ainda precisamos contribuir para nossa própria condenação, senão ela será
dupla? Nem é preciso mencionar a afronta à LINDB (Dec.-Lei 4.657/42), à Lei do Processo Administrativo (Lei 9.784/99), à CADH (Convenção Americana de Direitos
Humanos), ao PIDCP (Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos) e aos
princípios gerais de direito. É que a
ofensa constitucional é tão perniciosa que talvez seja melhor mudarmos o texto
para: Qualquer pessoa acusada de qualquer coisa, no âmbito judicial ou
administrativo, tem o dever de produzir prova contra si mesma, sob pena de, não
o fazendo, ser sancionada, nos termos da lei, à mesma pena que seria cabível no
caso do efetivo cometimento dos atos que lhe são imputados.
Fonte: Tagore Fróes
Doutorando pela
PUC-SP; Mestre e especialista pelo IDP; Graduado pela Harvard University;
Bacharel pelo UniCeub; Advogado; Professor; Autor de livros jurídicos;
pesquisador e eterno aluno.
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