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Não creio que seja demagógico dizer que o momento no Brasil
deveria reunir os Poderes para um debate sobre a economia de recursos.
Mas a crise surgida nos últimos dias gira em torno de R$ 30 bilhões. O
Congresso garantiu para si este naco do Orçamento. O governo vetou.
Possivelmente vão rachar esse bolo.
Houve muita hesitação, mas desfecho previsível. Começou com a frase
do general Heleno, concluída com um sonoro “f…-se!”. Durante a semana
sites nas redes sociais anunciavam a manifestação do “f…-se” para 15
março. Essa batalha pode não acontecer, como a de Itararé. Estão
marcadas manifestações da oposição e do governo para dias 14 e 15. Elas
podem até ser grandes, mas o sentido original, a disputa pelo dinheiro
do Orçamento, é um pouco confuso neste momento histórico. O Orçamento mesmo está se distanciando da realidade. Primeiro, porque
surgem gastos imprevisíveis, como os do combate ao coronavírus, e os
militares, com o motim de policiais no Ceará.
No caso do coronavírus,
não se trata apenas do que se vai gastar, estimado em R$ 350 milhões,
suficiente se a situação permanecer num estágio relativamente favorável:
não há evidência de transmissão do vírus no território nacional. O
problema econômico do coronavírus é o que se deixa de ganhar. As
dificuldades vividas pela China, a semiparalisação na Itália são só
alguns indícios de que o crescimento global será reduzido pela
disseminação do vírus. Aliás, de passagem, é bom lembrar que o Brasil é
um país singular: marca grandes demonstrações de massa num período de
coronavírus. Nesta mesma época, a Suíça está proibindo reunião de mais
de mil pessoas e a própria Olimpíada de Tóquio pode ser adiada. No universo paralelo da política, um momento necessário de
solidariedade diante do inimigo comum, o vírus, é suplantado pela
discussão sobre dinheiro, importante para os deputados que dependem das
eleições de 2020. Muitos dependem de vereadores e prefeitos para se
reeleger.
A frase do general Heleno foi um rompante. O palavrão, no sentido que
usou, significa romper os laços, dinamitar as pontes. O governo teria
de sair de seu isolamento encarnando o espírito de Chávez. Mas ele foi
até o fim, até o controle do Congresso. Isso no Brasil é difícil.
Bolsonaro tem uma frágil base de apoio no Congresso. É duro de cintura. Dificilmente manifestações populares vão mudar radicalmente a correlação
de forças. Ao dar as costas para a política, acabou sendo, de certa
forma, engolido por ela. Assim, o que pode acontecer é continuar
perdendo e achar uma forma de cantar vitória para seus seguidores.
Entre os muitos caminhos que levam o populismo à tentação autoritária
está o próprio processo eleitoral. Líderes carismáticos são eleitos por
sua personalidade e arrastam uma bancada heterogênea e incapaz. A
história da base de apoio parlamentar de Bolsonaro é constrangedora.
Não
há um conjunto de ideias coerente. Quando surgem os conflitos, eles se
personalizam e descambam rapidamente para a baixaria. Não dá para dobrar
o Congresso apenas com manifestações. Mesmo porque os deputados também
foram eleitos e se sentem legítimos. Quando alguém repete o termo do general Heleno no cotidiano, de modo
geral temos a tendência a dizer: “Calma, pense bem”. No caso do governo,
não tem saída senão continuar negociando. A única atenuante possível é
transformar as concessões em aparente vitória.
Além disso, existem alguns temas convergentes entre governo e maioria
no Congresso, como foi a reforma da Previdência. Mesmo aí foi
necessário fazer concessões às demandas parlamentares. É muito possível,
no futuro, que o próprio Congresso evolua e novos presidentes levem
consigo bancadas mais sólidas e capazes. Mas o único caminho é o
processo eleitoral, o amadurecimento democrático. Bolsonaro passou 28 anos na Câmara, mas quase não participou de
negociações políticas, era um cavaleiro solitário. Inegável que existem
muitas coisas repulsivas ou simplesmente condenáveis em acordos
políticos. Mas é inegável, também, que a atividade parlamentar ensina
muito, descobrem-se alguns atalhos, conquistam-se vitórias parciais.
Agora, ele tem o poder, mas não sabe como se relacionar com o
universo que habitou por quase três décadas, como explorar algumas de
suas qualidades, atenuar os grandes defeitos. Bolsonaro não apenas abriu
esse flanco. Ele não foi capaz de trazer uma equipe da sociedade e teve
de recorrer a um número excessivo de militares. Não dá para ligar o “f…-se”. É preciso aprender alguns passos no
caminho ou, então, arriscar-se a ver o termo voltando-se contra ele
mesmo.
No front da saúde o governo sai-se bem, mas o coronavírus não se
restringe a um campo. Tem repercussão na economia, aciona o aparato
científico do País e pode até estimular grandes programas sanitários que
não estão diretamente ligados a ele, como o saneamento básico. A única
referência que o vi fazendo sobre tema foi a expressão “este vírus aí”.
Este país aí, o Brasil num mundo complicado, está precisando cada vez
mais de elos e pontes e cada vez menos da tática do general Heleno.
Discussões sobre orçamento costumam ser monótonas, mas esta, com todo
o psicodrama, acabou revelando mais uma vez os limites do populismo.
Blog do Gabeira - Fernando Gabeira, jornalista
Artigo publicado no Estadão
Não creio que seja demagógico dizer que o momento no Brasil
deveria reunir os Poderes para um debate sobre a economia de recursos.
Mas a crise surgida nos últimos dias gira em torno de R$ 30 bilhões. O
Congresso garantiu para si este naco do Orçamento. O governo vetou.
Possivelmente vão rachar esse bolo.
Houve muita hesitação, mas desfecho previsível. Começou com a frase do general Heleno, concluída com um sonoro “f…-se!”. Durante a semana sites nas redes sociais anunciavam a manifestação do “f…-se” para 15 março. Essa batalha pode não acontecer, como a de Itararé. Estão marcadas manifestações da oposição e do governo para dias 14 e 15. Elas podem até ser grandes, mas o sentido original, a disputa pelo dinheiro do Orçamento, é um pouco confuso neste momento histórico. O Orçamento mesmo está se distanciando da realidade. Primeiro, porque surgem gastos imprevisíveis, como os do combate ao coronavírus, e os militares, com o motim de policiais no Ceará.
No caso do coronavírus, não se trata apenas do que se vai gastar, estimado em R$ 350 milhões, suficiente se a situação permanecer num estágio relativamente favorável: não há evidência de transmissão do vírus no território nacional. O problema econômico do coronavírus é o que se deixa de ganhar. As dificuldades vividas pela China, a semiparalisação na Itália são só alguns indícios de que o crescimento global será reduzido pela disseminação do vírus. Aliás, de passagem, é bom lembrar que o Brasil é um país singular: marca grandes demonstrações de massa num período de coronavírus. Nesta mesma época, a Suíça está proibindo reunião de mais de mil pessoas e a própria Olimpíada de Tóquio pode ser adiada. No universo paralelo da política, um momento necessário de solidariedade diante do inimigo comum, o vírus, é suplantado pela discussão sobre dinheiro, importante para os deputados que dependem das eleições de 2020. Muitos dependem de vereadores e prefeitos para se reeleger.
A frase do general Heleno foi um rompante. O palavrão, no sentido que usou, significa romper os laços, dinamitar as pontes. O governo teria de sair de seu isolamento encarnando o espírito de Chávez. Mas ele foi até o fim, até o controle do Congresso. Isso no Brasil é difícil. Bolsonaro tem uma frágil base de apoio no Congresso. É duro de cintura. Dificilmente manifestações populares vão mudar radicalmente a correlação de forças. Ao dar as costas para a política, acabou sendo, de certa forma, engolido por ela. Assim, o que pode acontecer é continuar perdendo e achar uma forma de cantar vitória para seus seguidores.
Entre os muitos caminhos que levam o populismo à tentação autoritária está o próprio processo eleitoral. Líderes carismáticos são eleitos por sua personalidade e arrastam uma bancada heterogênea e incapaz. A história da base de apoio parlamentar de Bolsonaro é constrangedora.
Não há um conjunto de ideias coerente. Quando surgem os conflitos, eles se personalizam e descambam rapidamente para a baixaria. Não dá para dobrar o Congresso apenas com manifestações. Mesmo porque os deputados também foram eleitos e se sentem legítimos. Quando alguém repete o termo do general Heleno no cotidiano, de modo geral temos a tendência a dizer: “Calma, pense bem”. No caso do governo, não tem saída senão continuar negociando. A única atenuante possível é transformar as concessões em aparente vitória.
Além disso, existem alguns temas convergentes entre governo e maioria no Congresso, como foi a reforma da Previdência. Mesmo aí foi necessário fazer concessões às demandas parlamentares. É muito possível, no futuro, que o próprio Congresso evolua e novos presidentes levem consigo bancadas mais sólidas e capazes. Mas o único caminho é o processo eleitoral, o amadurecimento democrático. Bolsonaro passou 28 anos na Câmara, mas quase não participou de negociações políticas, era um cavaleiro solitário. Inegável que existem muitas coisas repulsivas ou simplesmente condenáveis em acordos políticos. Mas é inegável, também, que a atividade parlamentar ensina muito, descobrem-se alguns atalhos, conquistam-se vitórias parciais.
Agora, ele tem o poder, mas não sabe como se relacionar com o universo que habitou por quase três décadas, como explorar algumas de suas qualidades, atenuar os grandes defeitos. Bolsonaro não apenas abriu esse flanco. Ele não foi capaz de trazer uma equipe da sociedade e teve de recorrer a um número excessivo de militares. Não dá para ligar o “f…-se”. É preciso aprender alguns passos no caminho ou, então, arriscar-se a ver o termo voltando-se contra ele mesmo.
No front da saúde o governo sai-se bem, mas o coronavírus não se restringe a um campo. Tem repercussão na economia, aciona o aparato científico do País e pode até estimular grandes programas sanitários que não estão diretamente ligados a ele, como o saneamento básico. A única referência que o vi fazendo sobre tema foi a expressão “este vírus aí”. Este país aí, o Brasil num mundo complicado, está precisando cada vez mais de elos e pontes e cada vez menos da tática do general Heleno.
Discussões sobre orçamento costumam ser monótonas, mas esta, com todo o psicodrama, acabou revelando mais uma vez os limites do populismo.
Blog do Gabeira - Fernando Gabeira, jornalista
Artigo publicado no Estadão
Houve muita hesitação, mas desfecho previsível. Começou com a frase do general Heleno, concluída com um sonoro “f…-se!”. Durante a semana sites nas redes sociais anunciavam a manifestação do “f…-se” para 15 março. Essa batalha pode não acontecer, como a de Itararé. Estão marcadas manifestações da oposição e do governo para dias 14 e 15. Elas podem até ser grandes, mas o sentido original, a disputa pelo dinheiro do Orçamento, é um pouco confuso neste momento histórico. O Orçamento mesmo está se distanciando da realidade. Primeiro, porque surgem gastos imprevisíveis, como os do combate ao coronavírus, e os militares, com o motim de policiais no Ceará.
No caso do coronavírus, não se trata apenas do que se vai gastar, estimado em R$ 350 milhões, suficiente se a situação permanecer num estágio relativamente favorável: não há evidência de transmissão do vírus no território nacional. O problema econômico do coronavírus é o que se deixa de ganhar. As dificuldades vividas pela China, a semiparalisação na Itália são só alguns indícios de que o crescimento global será reduzido pela disseminação do vírus. Aliás, de passagem, é bom lembrar que o Brasil é um país singular: marca grandes demonstrações de massa num período de coronavírus. Nesta mesma época, a Suíça está proibindo reunião de mais de mil pessoas e a própria Olimpíada de Tóquio pode ser adiada. No universo paralelo da política, um momento necessário de solidariedade diante do inimigo comum, o vírus, é suplantado pela discussão sobre dinheiro, importante para os deputados que dependem das eleições de 2020. Muitos dependem de vereadores e prefeitos para se reeleger.
A frase do general Heleno foi um rompante. O palavrão, no sentido que usou, significa romper os laços, dinamitar as pontes. O governo teria de sair de seu isolamento encarnando o espírito de Chávez. Mas ele foi até o fim, até o controle do Congresso. Isso no Brasil é difícil. Bolsonaro tem uma frágil base de apoio no Congresso. É duro de cintura. Dificilmente manifestações populares vão mudar radicalmente a correlação de forças. Ao dar as costas para a política, acabou sendo, de certa forma, engolido por ela. Assim, o que pode acontecer é continuar perdendo e achar uma forma de cantar vitória para seus seguidores.
Entre os muitos caminhos que levam o populismo à tentação autoritária está o próprio processo eleitoral. Líderes carismáticos são eleitos por sua personalidade e arrastam uma bancada heterogênea e incapaz. A história da base de apoio parlamentar de Bolsonaro é constrangedora.
Não há um conjunto de ideias coerente. Quando surgem os conflitos, eles se personalizam e descambam rapidamente para a baixaria. Não dá para dobrar o Congresso apenas com manifestações. Mesmo porque os deputados também foram eleitos e se sentem legítimos. Quando alguém repete o termo do general Heleno no cotidiano, de modo geral temos a tendência a dizer: “Calma, pense bem”. No caso do governo, não tem saída senão continuar negociando. A única atenuante possível é transformar as concessões em aparente vitória.
Além disso, existem alguns temas convergentes entre governo e maioria no Congresso, como foi a reforma da Previdência. Mesmo aí foi necessário fazer concessões às demandas parlamentares. É muito possível, no futuro, que o próprio Congresso evolua e novos presidentes levem consigo bancadas mais sólidas e capazes. Mas o único caminho é o processo eleitoral, o amadurecimento democrático. Bolsonaro passou 28 anos na Câmara, mas quase não participou de negociações políticas, era um cavaleiro solitário. Inegável que existem muitas coisas repulsivas ou simplesmente condenáveis em acordos políticos. Mas é inegável, também, que a atividade parlamentar ensina muito, descobrem-se alguns atalhos, conquistam-se vitórias parciais.
Agora, ele tem o poder, mas não sabe como se relacionar com o universo que habitou por quase três décadas, como explorar algumas de suas qualidades, atenuar os grandes defeitos. Bolsonaro não apenas abriu esse flanco. Ele não foi capaz de trazer uma equipe da sociedade e teve de recorrer a um número excessivo de militares. Não dá para ligar o “f…-se”. É preciso aprender alguns passos no caminho ou, então, arriscar-se a ver o termo voltando-se contra ele mesmo.
No front da saúde o governo sai-se bem, mas o coronavírus não se restringe a um campo. Tem repercussão na economia, aciona o aparato científico do País e pode até estimular grandes programas sanitários que não estão diretamente ligados a ele, como o saneamento básico. A única referência que o vi fazendo sobre tema foi a expressão “este vírus aí”. Este país aí, o Brasil num mundo complicado, está precisando cada vez mais de elos e pontes e cada vez menos da tática do general Heleno.
Discussões sobre orçamento costumam ser monótonas, mas esta, com todo o psicodrama, acabou revelando mais uma vez os limites do populismo.
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