Folha de S. Paulo/O Globo
Nem todos os eleitores de Bolsonaro eram golpistas, mas todos os golpistas votaram nele
Atingido pela pandemia, o capitão meteu-se num negacionismo pueril
Vivandeira é uma palavra bonita que designa coisa feia. A expressão foi
usada em agosto de 1964 pelo marechal-presidente Humberto Castello
Branco, numa memorável lição: “Há mesmo críticas tendenciosas e sem fundamento na opinião pública de
que o poder militar se desmanda em incursões militaristas. Mas quem as
faz são sempre os que se amoitaram em meios militares. Felizmente nunca
rondaram os portões das organizações do Exército que chefiei. Mas eu os
identifico a todos. E são muitos deles, os mesmos que, desde 1930, como
vivandeiras alvoroçadas, vêm aos bivaques bolir com os granadeiros e
provocar extravagâncias do poder militar”.
O presidente Jair Bolsonaro amoitou-se diante do quartel-general do
Exército, onde havia uma aglomeração de vivandeiras que pediam
extravagâncias do poder militar. No dia seguinte, disse que não tinha
nada a ver com as faixas que pediam o fechamento do Congresso, do
Supremo Tribunal Federal e uma volta à ditadura escancarada do Ato
Institucional nº 5. O capitão disse também que “eu sou, realmente, a Constituição”. Não é. Dias antes, falou em “minhas Forças Armadas”. Minhas?
Deve-se voltar ao marechal Castello Branco. Como chefe do Estado-Maior
do Exército, no dia 20 de março de 1964, uma semana depois do comício do
João Goulart ao lado do quartel-general enfeitado por tanques, ele
assinou uma circular reservada para os comandos. Disse que “os meios
militares nacionais e permanentes não são propriamente para defender
programas de governo, muito menos a sua propaganda, mas para garantir os
Poderes constitucionais, o seu funcionamento e a aplicação da lei”. Mais: “Não sendo milícia, as Forças Armadas não são armas para empreendimentos antidemocráticos”.
Castello Branco era um general francês. Já o seu colega Aurélio de Lyra
Tavares, subchefe do Estado-Maior do Exército, era qualquer outra coisa.
No dia seguinte, mandou-lhe uma carta na qual dizia que havia lido a
circular depois de sua expedição. (Portanto não tinha nada a ver com
aquilo). Informou que percebia um clima de apreensão “pela leitura dos
jornais”. (Maldita imprensa.) Em qualquer corporação há Castellos e há Lyra. O general viria a ser o
desastroso ministro do Exército do presidente Costa e Silva e integrante
da patética junta militar de 1969. Deu no que deu.
Nem todos os eleitores de Jair Bolsonaro eram golpistas, mas todos os
golpistas votaram no capitão. Em janeiro de 2019, quando ele entrou no
Planalto com seus 58 milhões de votos, poderia haver o sonho de um
emparedamento do Congresso. Passado um ano, o Executivo ficou menor que o
Parlamento. Atingido pela pandemia, o capitão meteu-se num negacionismo
pueril e viu-se atirado ao olho de uma crise econômica que não provocou
e que não mostra competência para administrar. Nas suas palavras: “Se
acabar economia, acaba qualquer governo. Acaba o meu governo. É uma luta
de poder”. Não é uma luta de poder, nem acaba qualquer governo e o dele
deve continuar até 31 de dezembro de 2022.
Se o presidente nada teve a ver com a vivandagem, torna-se impossível
encaixar o Bolsonaro de domingo (19) no Bolsonaro da segunda-feira (20).
Do alto da caçamba de uma camionete ele disse que “não queremos
negociar nada. (...) É agora o povo no poder”.
Sem golpe, não haverá como.
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