Conrado Hübner Mendes
O negacionismo político é mais perigoso que o sanitário
Pioneiro do rock russo, Andrei Makarevich contou em suas memórias que
nunca lhe ocorrera que "qualquer coisa pudesse mudar na União
Soviética". Recordava-se do conforto de pensar que "tudo era para
sempre", de "viver num Estado eterno". O colapso não cabia na sua
imaginação. O mesmo se passa com democracias. A ideia de que nada é tão ruim quanto
parece, ou de que a história está do seu lado, pouco importa o que
fazemos, tende a produzir resignação e passividade em democratas.
Dois séculos atrás Alexis de Tocqueville chamou a atenção para esse
"fatalismo democrático". David Runciman o chamou de "armadilha da
confiança": quanto mais se confia na permanência, maior o risco de pôr
tudo a perder. Democracias do mundo, nos últimos 20 anos, sofreram significativa queda
de qualidade. A quantidade de cidadãos insatisfeitos com o regime não
parou de crescer. Relatório do Centro para o Futuro da Democracia, da
Universidade de Cambridge, mostra que a proporção de insatisfeitos
atingiu o pico de 57,5% em 2020, marco da "recessão democrática".
O ano de 2020 também nos levou ao pico da "terceira onda de
autocratização" no mundo, segundo relatório do Centro V-Dem, da
Universidade de Gotemburgo. Pela primeira vez desde o relatório
inaugural, de 2001, há mais países autocráticos que democráticos no
mundo. O Brasil, descrito como país "em via de autocratização", é um dos
destaques negativos. Apesar de tudo isso, logo após as eleições de 2018, surgiu aqui a legião
dos profetas da democracia risco-zero. Vieram para nos proteger contra
os alarmistas, aqueles que acenderam a luz amarela ao olhar não só para
as palavras e atos de Bolsonaro em 30 anos de carreira, mas para a
violência concreta e simbólica do movimento que ele incita.
Os profetas, grupo eclético que reuniu de Ives Gandra a FH, de Luís
Roberto Barroso a Aloysio Nunes, e um pequeno grupo de acadêmicos,
afirmavam que tudo não passava de "choro dos perdedores". O cientista político Carlos Pereira não nos poupou de provocação assim
que o governo Bolsonaro completou seu primeiro ano. Em texto com título
jocoso —"Ih... a democracia não ruiu"— voltou a nos ensinar que "as
chances de erosão da democracia brasileira são quase nulas", uma
"quimera". Sua evidência científica era um famoso estudo da década de 1990, que
relacionava estabilidade democrática e faixa de renda. Foi só. Não se
deu sequer ao luxo de ouvir o que os autores daquele estudo, Fernando
Limongi e Adam Przeworski, dizem hoje. Não permitiu a nuance, nem a
dúvida.
O negacionismo político, que desfila cheio de soberba e verniz retórico,
não foi só precipitado. Ao se apressar na resposta, não teve tempo de
entender a pergunta. Não olhou para os lados, não ouviu os gritos dos
fatos, dos números e das redes. Não observou as ruas, as periferias, as
terras indígenas; nem as salas de aula, os laboratórios, as Redações de
jornal. Mal examinou a integridade das instituições. A deterioração democrática não chegou com Bolsonaro, mas ganhou com ele magnitude e velocidade desconhecidas. O presidente não só continua a apoiar o pedido de golpe militar e o
fechamento do Congresso e do STF, como embarcou sem volta no
negacionismo sanitário, contra tudo que diz a ciência e a experiência
mundial. É negacionismo estratégico, pois lhe interessa o destino
político, não as mortes.
Há duas maneiras de instituições responderem. Uma é repousar no
negacionismo político e emitir notas de repúdio. Outra é explorar vias
políticas e jurídicas para preservar o mínimo democrático que nos resta,
acima de projetos eleitorais de curto prazo. Ou alguma combinação
criativa que não estamos vendo. A revolução autoritária não será promulgada. Nem sairá no Diário Oficial.
Conrado Hübner Mendes, professor de direito da
USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da
Fundação Alexander von Humboldt - Folha de S.Paulo
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