Assunção de Hamilton Mourão seria a continuação do atual pesadelo
Sobram razões morais, políticas e possivelmente jurídicas para o
impedimento de Jair Bolsonaro. As acusações do ministro Sergio Moro ao
deixar o cargo são graves e verossímeis. Somam-se à repulsiva
participação do presidente na manifestação em que, diante do
Quartel-General do Exército, uma turba urrou pelo fechamento do
Congresso e do Supremo Tribunal Federal, com a volta da ditadura.
Ainda assim, é difícil descartar as considerações não só da
oportunidade, mas sobretudo dos efeitos do impeachment. Se uma proposta
nesse sentido avançasse no Congresso, consumiria inevitavelmente a
atenção, o tempo e os esforços que devem ser dedicados ao único
propósito coletivo que agora de fato importa: conter a enorme devastação
humana, social e econômica produzida pelo coronavírus.
Ela poderá ter também outras consequências nefastas que não convém
ignorar. No sistema presidencialista, os titulares do Executivo têm
mandato fixo; a sua abreviação é quase sempre traumática. Com ou sem
reeleição, o calendário preestabelecido é a regra de ouro que organiza a
disputa pelo poder. Políticos e partidos têm nas eleições periódicas e com data conhecida o seu horizonte de ação.
Eis por que, na origem do presidencialismo, o impeachment foi criado
como recurso último e excepcional para frear a ambição dos mandatários;
sua mera possibilidade deveria dispensar o seu efetivo emprego. O
recurso frequente ao impeachment desestrutura o jogo do presidencialismo
e cria perigosa instabilidade institucional, que tende a enfraquecer a
confiança na democracia.
Em três décadas, a contar de 1989, dois presidentes foram impedidos no
Brasil. Nos EUA, em mais de dois séculos, foram abertos processos contra
quatro presidentes.. É insensato supor que um terceiro trauma do
gênero, apenas quatro anos depois do anterior, mesmo para barrar um
mandatário com ostensiva vocação autoritária, contribuirá para o
fortalecimento das nossas instituições democráticas. [Vocação autoritária mais fruto de uma interpretação criativa do que de uma realidade e que sempre´quanto entendem que está surgindo, é contida com mais autoritarismo.]
Por fim, não custa lembrar que, afastado, Bolsonaro será substituído
pelo vice, general Hamilton Mourão, com o qual compartilha convicções
reacionárias, entre elas uma visão antediluviana da questão ambiental e
do respeito ao modo de vida de nossas populações indígenas;
sensibilidade zero para a tragédia social brasileira e, muito
provavelmente, a mesma concepção estreita da importância das liberdades
civis.
Assim não fosse, não lhe teria ocorrido, ao deixar o Exército para se
juntar a Bolsonaro, saudar o falecido major-torturador Brilhante Ustra. A
sua ascensão ao poder transformaria o dia seguinte ao impeachment na
continuação do atual pesadelo.
Maria Hermínia Tavares, professora aposentada e pesquisadora - Folha de S. Paulo
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