Guedes perde a liderança da economia para os políticos do Nordeste, que prometem votos em troca de R$ 300, porque não oferece empregos nem segurança aos investidores
O presidente Jair Bolsonaro provavelmente não leu Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre; talvez tenha lido Os Sertões, de Euclides da Cunha, nos tempos de academia militar, por causa da campanha de Canudos, o maior vexame do Exército brasileiro. Mas isso em nada o impede de ter capturado boa parcela do eleitorado do Nordeste, onde obtém crescente apoio popular. Esse parece ser o terreno eleitoral no qual sua reeleição pode ser decidida. Com competência, Bolsonaro está abduzindo [conquistando, liderando] o eleitorado nordestino do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. [O Exército brasileiro mais uma vez cumpriu sua missão. O custo é necessário para o êxito.]
Casa Grande & Senzala foi publicado no Rio de Janeiro, em 1933. História, sociologia, antropologia cultural, gastronomia, direito, sociolinguística, curiosidades, medicina e uma boa dose de intimidades da vida privada colonial, inclusive sexual, fazem da obra um clássico da chamada literatura brasiliana. Freyre, um aristocrata pernambucano, ainda provoca muitas polêmicas. A principal é o tratamento dado ao português colonizador e à escravidão. Para uns, mascarou o racismo; para outros, resgatou a autoestima do brasileiro.
Freyre compreendeu a miscigenação como um dos elementos de construção da identidade nacional. É muito criticado por isso. Sérgio Buarque de Holanda (o homem cordial), Raymundo Faoro (patrimonialismo) e Roberto DaMatta (o jeitinho brasileiro) também são acusados de generalizações exageradas e da absolutização de seus conceitos. Todos construíram um “tipo ideal”, uma abordagem de viés weberiano que os autores marxistas geralmente condenam. Entretanto, seria impossível compreender o Brasil contemporâneo sem a ajuda desses autores, até porque a crítica a eles veio muito depois, com a maioridade acadêmica das universidades brasileiras.
Freyre fala dos índios, dos portugueses e dos escravos africanos, com considerações que alguns consideram até pornográficas. Ao descrever hábitos sexuais, faz comentários machistas e até homofóbicos. Ao analisar a formação do patriarcado brasileiro, no período colonial, opõe católicos e hereges, jesuítas e fazendeiros, bandeirantes e senhores de engenho, paulistas e emboabas, pernambucanos e mascates, bacharéis e analfabetos, senhores e escravos. Mostra que a escravidão e o latifúndio fortaleceram a sociedade patriarcal onde o homem branco – o dono da Casa-Grande – era o proprietário de terras, escravos, até mesmo de seus parentes, no sentido que ele governava gado e gente. Desta maneira, criou-se uma sociedade sempre dependente de um senhor poderoso e incapaz de governar a si mesma.
Chegamos ao xis da questão. A política no Nordeste não é pior nem melhor do que a de outras regiões do país em matéria de clientelismo, fisiologismo e patrimonialismo (o Rio de Janeiro, de cuja elite parte o maior preconceito, que o diga), mas tem a forte característica de ser dominada por um patriarcado que manteve costumes culturais e políticos tecidos no Brasil colonial. Os seis mandatos de deputado federal e suas relações com políticos do baixo clero, a partir do momento em que se aliou ao Centrão, possibilitaram a Bolsonaro a realização de alianças estratégicas no Nordeste, no leito das conexões históricas entre o poder centralizado da União e as oligarquias regionais que historicamente lhe deram sustentação, a essência da velha “política de conciliação” que herdamos do Império.
Vem daí a força que políticos nordestinos do Centrão, como o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, o senador Ciro Nogueira (PP-PI) e o deputado Arthur Lira (PP-AL) demonstram na queda de braços com o ministro da Economia, Paulo Guedes, sobre o financiamento do programa social Renda Cidadã. E a facilidade com que Bolsonaro construiu as pontes para se conectar com o eleitorado nordestino, que o derrotara na eleição de 2018, [(sic); podemos considerar derrota um resultado que não alterou o principal?] alicerçadas no auxílio emergencial aprovado pelo Congresso durante a pandemia e cimentadas por sua narrativa de cunho religioso, que agora incorporou a exaltação à figura do Padre Cícero, símbolo do messianismo católico brasileiro, que sempre foi um instrumento de construção da hegemonia conservadora no Nordeste.
“Viver é muito perigoso, seu moço”, ainda mais em tempos de pandemia. Não sei se Guedes leu Casa Grande & Senzala, o que o ajudaria entender um pouco mais os seus desafetos políticos da Praça dos Três Poderes. Mas, como mineiro ilustrado, deve ter lido Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Desculpem-me a comparação, para sobreviver no cargo, Guedes precisa puxar a faca e se impor como líder da política econômica do governo, como faria o jagunço Riobaldo. O universo do sertão é um espaço ambíguo, de limites indefiníveis, desafiador e de difícil travessia.
Cruzar o deserto do Sussuarão é como desafiar a caatinga. O espaço empírico se relaciona com a subjetividade humana. Riobaldo explica: “Sertão é isto: o senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão é quando menos se espera; digo”. Como o jagunço nas Veredas-Mortas, Guedes está num espaço de estranhamento, a Esplanada dos Ministérios, simbolicamente, entre a ordem e a desordem, a precisão e a imprecisão, o Bem e o Mal. Está perdendo a liderança do bando, isto é, da política econômica, para os políticos do Nordeste, que prometem votos a Bolsonaro em troca de R$ 300, porque não consegue oferecer trabalho aos desempregados nem segurança aos investidores. Simples assim.
Nas Entrelinhas - Luiz Carlos Azedo, jornalista - Correio Braziliense
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