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segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

Lista negra - Feitores da linguagem: juízes “esclarecidos” denigrem a dignidade humana - Gazeta do Povo

Vozes - Paulo Polzonoff Jr

"Ensina-me, Senhor, a ser ninguém./ Que minha pequenez nem seja minha". João Filho.

Lista negra - ovelha negra

O fim de semana foi maravilhoso. Mas minha festa particular teve lá seus momentos de estranheza. Quando me surpreendi pensando na eliminação do Brasil na Copa, por exemplo. Faltavam só quatro minutos, poxa! Ou quando me vi gargalhando amarelo diante da Lista Negra (!) de Palavras e Expressões Racistas elaborada pelo totalitário TSEum tribunal que abandonou suas funções óbvias e restritas às eleições para se dedicar integralmente ao nada nobre trabalho de controlar a sociedade.

Nem as simpáticas ovelhinhas negras escapam da sanha “purificadora” dos militantes travestidos de juízes. Foto:

A risada tem mesmo essa função de apontar o ridículo diabólico da lista de palavras e expressões que, na opinião desses fariseus modernos, devem ser abolidas do vocabulário. Afinal, não há nada mais engraçado do que o homem seduzido pela própria “razão” a ponto de se achar capaz de controlar a linguagem em seus mínimos detalhes. A queda de Lúcifer tem, sim, seu quê de engraçado. Humor negro, digo.

Mas a verdade é que a listinha da corte mais stalinista deste Brasilzão de meu Deus não tem graça.  
Nem se agora, do nada, essa crônica fosse invadida pelo soldado Peçanha, lotado na Delegacia de Combate aos Crimes Vocabulares
“O quê?! Você disse ‘esclarecer’? Que samba do crioulo doido é este texto? Teje preso!”, diria ele nesta minha tentativa frustrada de fazer rir criando um personagem patético, cheio de ressentimentos históricos, cossofredor de dores ancestrais e ainda imaginário nas esquinas da vida. Mas muito real nos gabinetes desses juizecos de meia-tigela.
 
Não tem graça porque, ao contrário das iniciativas semelhantes que já foram motivo de escrutínio neste espaço, essa lista é um documento elaborado por uma tribunal. Por juízes.  
Por magistrados cuja responsabilidade, em tese, é a de mediar as relações humanas, numa esforço para manter algo remotamente semelhante à paz nesse mundo de conflitos incessantes. 
Na prática, porém, o que esses juízes fazem é fomentar o ódio entre as pessoas, o que só aumenta seu poder de coação e controle.

Uma imoralidade em si
E aqui vou usar um verbo apropriado, embora juridicamente incorreto, para descrever as intenções dos militantes de toga com essa nhaca de lista: escravizar. Só que, neste caso, o juiz-feitor afeta virtude ao chicotear no pelourinho um tipo de ser humano que ele vê como inferior e digno do açoite não por causa da cor da pele, e sim por causa das palavras e expressões que usa.

Na plateia deste espetáculo abjeto, talvez neguinho ria de nervoso, se perguntando: “Como chegamos a este ponto?”. Mas terá sido tarde demais. Porque ao redor dele não haverá ninguém para responder que chegamos até aqui assim: por interesses insondáveis, no remoto século XXI militantes travestidos de juízes não só fomentaram o ódio entre as pessoas como também foram soberbos a ponto de se acharem capazes de amenizar um tal de ressentimento histórico (uma imoralidade em si) proibindo palavras “racistas”. E quando disseram aos juízes-militantes que isso tudo tinha um quê de Torre de Babel, eles farfalharam suas togas, dando de ombros para a sabedoria milenar do bom senso.
 
Ao impor mais e mais restrições descabidas à linguagem, no afã de reconstruir uma cultura que nunca pediu para ser destruída, quanto mais reconstruída, juízes querem exercer o controle total sobre o homem comum. 
Querem manobrar não só suas ações, impedindo-os de cometerem “crimes”; 
querem manobrar seus pensamentos, impedindo-os de pensarem “errado”. E sabe o que é pior? 
O pior é que há muita gente que se submete voluntariamente à senzala do pensamento.
[a título de modesta colaboração linkamos para matéria em que mais normas poderão ser conhecidas; enfaticamente, recomendamos que evitem concluir qualquer coisa sobre o tema = visto que, CONCLUSÃO ERRADA se tornou crime grave. No máximo, pensem - pensamento silencioso, nada de pensar com seus botões.]
Como aqueles que fazem mesuras ao dono da casa grande substituindo o criado-mudo por alguma palavra mais esclarecida.  
Que não preparam nem mais uma deliciosa nega-maluca para a criançada
Que se recusam a sambar o simpático e divertido samba do crioulo doido da linguagem cotidiana. 
Que, no mercado negro dos vícios disfarçados de virtude, preferem a passividade do rebanho a bancar a ovelha negra. 
Que, desavergonhados da própria boçalidade, denigrem a dignidade humana ao anunciarem uma lista negra de palavras cujo objetivo é, repito quantas vezes for necessário, tornar o indivíduo cativo de suas vontades.

Paulo Polzonoff Jr. é jornalista, tradutor e escritor. - Gazeta do Povo - VOZES

 


sábado, 30 de abril de 2022

‘O pior racista é o negro vitimista’ - Revista Oeste

Paula Leal

Para o pastor e pré-candidato a deputado federal Wesley Ros, o negro precisa se libertar e superar o auto preconceito

Wesley Ros é pastor, cantor gospel, compositor e produtor musical. Aos 45 anos, ele é hoje um dos pastores evangélicos mais influentes das redes sociais. Em junho de 2020, Ros gravou um vídeo manifestando sua opinião sobre racismo, na esteira do que aconteceu com George Floyd, morto por um policial na cidade de Minneapolis, nos EUA, em maio daquele ano. O discurso foi na contramão dos movimentos antirracistas que se insurgiram na época, como o Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), ao criticar a vitimização de grupos que usam a cor de pele como justificativa para a falta de oportunidades. “Era necessário que alguém que pensasse fora da bolha vitimista falasse alguma coisa”, disse Ros. A publicação viralizou nas mídias sociais. 


O pastor Wesley Ros | Foto: Arquivo Pessoal
O pastor Wesley Ros | Foto: Arquivo Pessoal

 

Desde então, ele ganhou milhares de seguidores e passou a compartilhar suas opiniões e a defender abertamente pautas de direita, como a não legalização das drogas e do aborto. Em dezembro passado, foi a Brasília e realizou uma apresentação musical no Palácio da Alvorada. Na plateia estavam o presidente Jair Bolsonaro e a primeira-dama, Michelle Bolsonaro, além de políticos e ministros. Ao término do show, Bolsonaro convidou o pastor para ser candidato a deputado federal por São Paulo: “Negão… Bora pra São Paulo? Se os bons se omitirem, os maus prevalecem”, disse o presidente. “Na hora fiquei meio sem entender o que ele estava dizendo”, confessou o pastor. “Não sabia o que fazer, só abracei o presidente.” Ros aceitou o convite e hoje é pré-candidato a deputado federal por São Paulo pelo PL, partido de Bolsonaro

Nesta entrevista, o produtor musical fala sobre a atuação de movimentos antirracistas, critica o discurso da “dívida histórica” em razão dos tempos da escravidão para justificar ações inclusivas e diz que não vai aceitar receber cota do fundo eleitoral pelo fato de ser negro. “Se for obrigado a receber, recebo e faço uma doação”, disse.  

A seguir, os principais trechos da entrevista.

Em junho de 2020, na esteira da morte de George Floyd, um vídeo em que o senhor fala sobre racismo viralizou nas redes sociais. Por que o senhor resolveu gravar o vídeo? 

Desde a morte do George Floyd, começou nos Estados Unidos uma onda de manifestações, para que as pessoas ficassem com ódio dos brancos. Em um protesto nos EUA, por exemplo, manifestantes jogaram uma tampa de ferro de esgoto na cabeça de um policial, que era branco, e ele morreu. O foco era contra policiais, de preferência brancos. Então, tive de me posicionar. Essa onda se espalhou por alguns países, inclusive no Brasil, com o episódio do Carrefour [em novembro de 2020, um homem negro foi morto por seguranças dentro de um supermercado da rede em Porto Alegre]. Pessoas tocando fogo no Carrefour e aquela situação toda. Era necessário que alguém que pensasse fora da bolha vitimista falasse alguma coisa. Caso de racismo existe? Existe. Algo que, inclusive, já aconteceu comigo. A ideia do vídeo era não maximizar o vitimismo. Quis  apontar o racista e não generalizar que todo branco é racista. Acho que meu recado foi muito bem dado.

Como foi a repercussão desse vídeo nas redes sociais? 

Ganhei muitos seguidores. Com isso, pude maximizar o que penso sobre a convivência entre negros e brancos e externar minhas opiniões políticas. Na época, os principais blogs entraram em contato para me entrevistar. Vi o carinho das pessoas. E não foi pela minha cor. Foi pelas minhas opiniões. Quantos negros chegaram para mim dizendo que pensavam diferente, que abri a cabeça deles, como um machado no cérebro. Mas também sofri um pouco de cobrança, de perseguição nas redes sociais. Esses que já têm carteirinha de militante disseram que eu estava negando o movimento, que eu era negro com discurso de branco. Esses são os verdadeiros racistas.

“A cota deveria ser social. Existem brancos embaixo de pontes, brancos na cracolândia, existe branco passando necessidade”

Como o senhor responde a negros que dizem que os brancos têm uma dívida histórica em razão da escravidão e que é preciso compensar esse período com ações inclusivas?

O negro tem uma licença para ser racista. Qual é? Jogar a culpa na dívida histórica. ‘Estou atacando o branco, mas não é um ataque. Sou a vítima, porque o branco tem uma dívida comigo’. E por isso o negro se acha no direito de atacar o branco. E o branco não pode se defender, mesmo sofrendo racismo por parte do negro. Quem é o verdadeiro racista nessa história?

O que o senhor pensa sobre a política de cotas nas universidades?

A cota deveria ser social. Existem brancos embaixo de pontes, brancos na cracolândia, existe branco passando necessidade. Tá cheio de negão milionário e de branco pobre. Esse discurso de dívida histórica pode ter funcionado por um determinado tempo, hoje não mais. Não há por que cobrar uma dívida do branco se não foi ele que fez e não é o negro de hoje que está amarrado num tronco. Isso não faz sentido. Além disso, é uma depreciação quando o negro entra em uma universidade e diz que conseguiu com a ajuda do branco. O mesmo branco que ele critica. 

O Brasil é um país racista?

Nos Estados Unidos, existiam bairros negros e brancos, escolas para negros e para brancos. No Brasil não houve isso. Você sai na rua e vai encontrar negros e brancos em qualquer esfera da sociedade. Aí vem o discurso: ‘Mas o negro não tem chance’. Como assim? Ele tem chance no funk e ganha milhões, tem chance no rap, no samba e ganha milhões, tem chance no futebol. Se existem setores em que o negro pode crescer e se tornar milionário, por que não na intelectualidade? Não é que não tem oportunidade, é que muita gente escolhe não estudar. É o negro que cresce com essa mentalidade ‘não tenho, não sou, não posso, não consigo’. A cadeira do intelectual branco, por exemplo, quem fundou foi um negro, Machado de Assis [o escritor fundou a Academia Brasileira de Letras, em 1897]. O pior racista é o negro vitimista. Porque ele sempre acusa o branco. E não é um branco, é o branco, no coletivo.

O senhor já disse que não acredita na existência da raça negra e que isso seria uma criação afro para distinguir preto de branco e dizer que preto tem raça e o branco não. Por quê?

Os movimentos de minorias sempre cobram que eu defenda a raça. Mas que raça? ‘A negra’, eles dizem. Mas eu não sou da raça negra, sou da raça humana. O cara que se ofende por ser chamado de negão precisa rever seus conceitos. Ele é preconceituoso. Porque essa mesma pessoa que se ofende, muitas vezes, é aquela que veste uma camiseta escrita “100% preto”, mas se sente ofendida quando um branco a chama de preto.

O senhor tem bastante contato com a classe artística. Como o senhor avalia o engajamento dos artistas em defesa de movimentos negros e antirracistas?

Veja o exemplo da música cantada pelo Seu Jorge no filme Marighella,a carne mais barata do mercado é a carne negra’. Ele já foi casado com quatro mulheres, e as quatro são brancas
Por acaso, ele estava em promoção quando elas chegaram para casar com ele? 
Olha os carros que ele tem, quanto custa um show dele? R$ 300 mil, R$ 400 mil? 
Ele é carne barata? Isso é tripudiar em cima dos negros, fazer deles palanque para alcançar fortuna e chamar todos os brancos de racistas. 
 
Menos as mulheres dele. Não entendo essa hipocrisia. A Ludmilla, funkeira, disse que precisou se mutilar para ser aceita na sociedade e que, por isso, fez cirurgia para afinar o nariz. Aí eu pergunto: e branco não faz também? É questão de estética. Ludmilla se mutilou não porque não foi aceita na sociedade, mas porque ela não se gosta. Ela se mutilou porque não se aceita negra. Por isso que ela usa peruca, alisa o cabelo. Quantas mulheres se cuidam, fazem dieta, alisam cabelo, fazem cirurgia plástica independentemente de serem brancas ou pretas? O negro precisa vencer o seu autopreconceito para depois dizer que algum branco é preconceituoso. 

Como o senhor define o negro que não pensa como o senhor?

Chamo de prisioneiro de uma senzala ideológica. Não se pode mais amarrar fisicamente os pulsos dele, os pés dele, então ele permite que amarrem seu cérebro. No fundo, ele ainda é um escravo. 

O senhor foi convidado pessoalmente pelo presidente Jair Bolsonaro para ser candidato a deputado federal. Por que aceitou o convite? 

Nunca tinha passado pela minha cabeça entrar na política. Nunca trabalhei em gabinete, na esfera pública. Meu negócio sempre foi a música, o palco, gravar artistas. Quando Bolsonaro me convidou, foi uma grande surpresa. E capitão não pede, capitão ordena. E o soldado que é inteligente obedece. O presidente me abriu os olhos para encarar o pedido como uma missão, um propósito. Para mim, lucrativamente, é andar para trás. Abrir mão das minhas agências, produções, shows, para ganhar o salário de deputado federal, é preciso ter muito amor no coração. Mas entendi o chamado de Bolsonaro e que ele precisa de ajuda. 

Por ser negro, o senhor terá direito a cotas do fundo eleitoral do seu partido. Como enxerga esse benefício?

Meu partido vai dar cota para que eu receba verba partidária só porque sou negro? Não quero. ‘Mas é obrigatório.’ Se for obrigado a receber, recebo e faço uma doação. Veja, isso foi um projeto da Benedita da Silva [em 2020, o Tribunal Superior Eleitoral acatou o projeto da deputada federal do PT para que os partidos destinassem recursos do fundo eleitoral de maneira proporcional à quantidade de candidatos negros e brancos]. O que a deputada quis com isso? Ela quis vender a ideia de que está ajudando a comunidade negra com essa iniciativa. Ela quis mostrar que os brancos sempre estiveram no poder na política e que seu projeto vai promover mais candidatos negros. Benedita ganhou o que queria: votos. Negros escravizam negros. Como lá atrás. A história se repete, só que agora é na ideologia.

O que o senhor pretende realizar caso seja eleito deputado? 

O político hoje não tem de ter bandeira, ele precisa atender o Estado que o elegeu e os eleitores que confiaram nele. Vou dizer que sou simpatizante a alguns temas, como a cultura e o foco em investimentos na periferia. Simpatizo também com a ideia de instalar escolas cívico-militares. Por que não? Eu gostaria de ver meus filhos hasteando a bandeira, cantando o Hino Nacional. Juntando todas as emendas a que um parlamentar federal tem direito, ele consegue movimentar cerca de R$ 60 milhões por ano. Dá para fazer muita coisa. Acho que serei uma peça fundamental caso isso se concretize, porque vou mostrar para os meus irmãos de cor que é possível pensar diferente daquilo que eles aprenderam a vida toda em um universo totalmente vitimista. E quero fazer por todos. Não pelos negros, mas pelas pessoas. 

Leia também “O socialismo promove a socialização da escassez”

Paula Leal, colunista - Revista Oeste



domingo, 4 de outubro de 2020

Quem é o líder da economia? Nas entrelinhas

Guedes perde a liderança da economia para os políticos do Nordeste, que prometem votos em troca de R$ 300, porque não oferece empregos nem segurança aos investidores

O presidente Jair Bolsonaro provavelmente não leu Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre; talvez tenha lido Os Sertões, de Euclides da Cunha, nos tempos de academia militar, por causa da campanha de Canudos, o maior vexame do Exército brasileiro. Mas isso em nada o impede de ter capturado boa parcela do eleitorado do Nordeste, onde obtém crescente apoio popular. Esse parece ser o terreno eleitoral no qual sua reeleição pode ser decidida. Com competência, Bolsonaro está abduzindo [conquistando, liderando]  o eleitorado nordestino do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. [O Exército brasileiro mais uma vez cumpriu sua missão. O custo é necessário para o êxito.]

Casa Grande & Senzala foi publicado no Rio de Janeiro, em 1933. História, sociologia, antropologia cultural, gastronomia, direito, sociolinguística, curiosidades, medicina e uma boa dose de intimidades da vida privada colonial, inclusive sexual, fazem da obra um clássico da chamada literatura brasiliana. Freyre, um aristocrata pernambucano, ainda provoca muitas polêmicas. A principal é o tratamento dado ao português colonizador e à escravidão. Para uns, mascarou o racismo; para outros, resgatou a autoestima do brasileiro.

Freyre compreendeu a miscigenação como um dos elementos de construção da identidade nacional. É muito criticado por isso. Sérgio Buarque de Holanda (o homem cordial), Raymundo Faoro (patrimonialismo) e Roberto DaMatta (o jeitinho brasileiro) também são acusados de generalizações exageradas e da absolutização de seus conceitos. Todos construíram um “tipo ideal”, uma abordagem de viés weberiano que os autores marxistas geralmente condenam. Entretanto, seria impossível compreender o Brasil contemporâneo sem a ajuda desses autores, até porque a crítica a eles veio muito depois, com a maioridade acadêmica das universidades brasileiras.

Freyre fala dos índios, dos portugueses e dos escravos africanos, com considerações que alguns consideram até pornográficas. Ao descrever hábitos sexuais, faz comentários machistas e até homofóbicos. Ao analisar a formação do patriarcado brasileiro, no período colonial, opõe católicos e hereges, jesuítas e fazendeiros, bandeirantes e senhores de engenho, paulistas e emboabas, pernambucanos e mascates, bacharéis e analfabetos, senhores e escravos. Mostra que a escravidão e o latifúndio fortaleceram a sociedade patriarcal onde o homem branco – o dono da Casa-Grande – era o proprietário de terras, escravos, até mesmo de seus parentes, no sentido que ele governava gado e gente.  Desta maneira, criou-se uma sociedade sempre dependente de um senhor poderoso e incapaz de governar a si mesma.

Travessias
Chegamos ao xis da questão. A política no Nordeste não é pior nem melhor do que a de outras regiões do país em matéria de clientelismo, fisiologismo e patrimonialismo (o Rio de Janeiro, de cuja elite parte o maior preconceito, que o diga), mas tem a forte característica de ser dominada por um patriarcado que manteve costumes culturais e políticos tecidos no Brasil colonial. Os seis mandatos de deputado federal e suas relações com políticos do baixo clero, a partir do momento em que se aliou ao Centrão, possibilitaram a Bolsonaro a realização de alianças estratégicas no Nordeste, no leito das conexões históricas entre o poder centralizado da União e as oligarquias regionais que historicamente lhe deram sustentação, a essência da velha “política de conciliação” que herdamos do Império.

Vem daí a força que políticos nordestinos do Centrão, como o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, o senador Ciro Nogueira (PP-PI) e o deputado Arthur Lira (PP-AL) demonstram na queda de braços com o ministro da Economia, Paulo Guedes, sobre o financiamento do programa social Renda Cidadã. E a facilidade com que Bolsonaro construiu as pontes para se conectar com o eleitorado nordestino, que o derrotara na eleição de 2018, [(sic); podemos considerar derrota um resultado que não alterou o principal?] alicerçadas no auxílio emergencial aprovado pelo Congresso durante a pandemia e cimentadas  por sua narrativa de cunho religioso, que agora incorporou a exaltação à figura do Padre Cícero, símbolo do messianismo católico brasileiro, que sempre foi um instrumento de construção da hegemonia conservadora no Nordeste.

“Viver é muito perigoso, seu moço”, ainda mais em tempos de pandemia. Não sei se Guedes leu Casa Grande & Senzala, o que o ajudaria entender um pouco mais os seus desafetos políticos da Praça dos Três Poderes. Mas, como mineiro ilustrado, deve ter lido Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Desculpem-me a comparação, para sobreviver no cargo, Guedes precisa puxar a faca e se impor como líder da política econômica do governo, como faria o jagunço Riobaldo. O universo do sertão é um espaço ambíguo, de limites indefiníveis, desafiador e de difícil travessia. 

Cruzar o deserto do Sussuarão é como desafiar a caatinga. O espaço empírico se relaciona com a subjetividade humana. Riobaldo explica: “Sertão é isto: o senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão é quando menos se espera; digo”. Como o jagunço nas Veredas-Mortas, Guedes está num espaço de estranhamento, a Esplanada dos Ministérios, simbolicamente, entre a ordem e a desordem, a precisão e a imprecisão, o Bem e o Mal. Está perdendo a liderança do bando, isto é, da política econômica, para os políticos do Nordeste, que prometem votos a Bolsonaro em troca de R$ 300, porque não consegue oferecer trabalho aos desempregados nem segurança aos investidores. Simples assim.

Nas Entrelinhas - Luiz Carlos Azedo, jornalista - Correio Braziliense



 

quinta-feira, 5 de março de 2020

Pura matemática - O que são R$ 30 bi num orçamento de R$ 3,6 trilhões - J.R. Guzzo

Gazeta do Povo

Planalto e Congresso fazem queda de braço por R$ 30 bi do orçamento. É muito atrito para pouco dinheiro.

Por alguma razão que talvez só investigadores da alma brasileira com a pertinácia e a turbinagem mental de um Gilberto Freyre ou um Euclides da Cunha conseguiriam explicar, mas não explicaram, a cultura brasileira tem dificuldades frequentemente mortais com a matemática. A coisa não vai, simplesmente – não gostamos de fazer conta, essa é que é a verdade.

Seria algum desdobramento obscuro das tensões entre casa grande e senzala, talvez, ou uma reação tardia da notória nutrição deficiente das elites coloniais? Quem sabe uma consequência mal avaliada dos contrastes entre o sertanejo, um forte, e os mestiços neurastênicos do litoral? Vai saber. O fato é que o brasileiro é ruim na hora de mexer com a calculadora e conseguir pensar alguma coisa inteligente sobre o que apareceu na tela.

Um dos grandes clássicos do gênero está em cartaz neste preciso momento, com a apaixonada discussão, no mundo político, na mídia e nas mesas redondas da televisão, do “orçamento impositivo”. Você não entendeu muito bem, ou simplesmente não entendeu, o que é isso – e, sobretudo, se é bom, se é ruim ou se não é nada? Não se preocupe: muito pouca gente entendeu, e quem entendeu não está explicando.

Basicamente, trata-se de determinar, entre Congresso e Executivo, como, onde e por quem será gasta uma certa porção do orçamento federal de 2020 – e obviamente, quanto dinheiro público ficará bloqueado nisso. Não é preciso ser nenhum gênio para ver que tanto os parlamentares quanto o governo querem, cada um do seu lado, mais dinheiro para si próprios. A disputa fica ainda mais evidente quando se sabe que a maior parte do orçamento da União, no linguajar em uso nas finanças públicas, é composto pela célebre “verba carimbada”: só pode ir para onde o carimbo manda que vá. Tanto para a folha de pagamento, tanto para a Previdência Social, tanto para esta ou aquela área específica. O resultado é que a parte realmente disponível para ser gasta a cada ano fica estreita – e quanto mais estreita, maior a briga.

Entra em cena, à essa altura, a atávica dificuldade brasileira com as operações aritméticas. É complicado: esse bloqueio, presente em todo o seu esplendor naquilo que sai publicado na mídia, acaba por tornar a questão toda incompreensível. Este ano, como se sabe, o Congresso está querendo, para aplicar nos projetos dos deputados e senadores, uma quantia inédita de dinheiro do orçamento. O presidente da República vetou parte das pretensões dos parlamentares – e agora vai se decidir se os seus vetos serão mantidos, derrubados ou valerão em parte. Pronto.

Congressistas falam em “choque de poderes”, “desafio ao Parlamento” e crise institucional”. Gente do governo fala que há uma conspiração no Congresso para criar uma espécie de “parlamentarismo branco” no país – seriam os políticos e partidos os que iriam realmente mandar no orçamento, uma anomalia em nosso regime presidencial.

O dinheiro envolvido na briga é de R$ 30 bilhões, que passariam a ser gastos segundo as decisões dos deputados e senadores. E o que são R$ 30 bilhões? Um número só quer dizer alguma coisa se comparado com outro; sozinho, pode muito bem não significar coisa nenhuma. No caso, pouco se diz ao público pagante que o orçamento de 2020 é de R$ 3,6 trilhões – e que a reforma tributária ora em cogitação pode envolver um total de até R$ 6 trilhões. E então: será que aqueles trintinha em relação aos quais tanto se grita seriam mesmo capazes de criar um regime “parlamentarista”, de qualquer cor, no Brasil?

Só o déficit previsto nas contas da União em 2020 (repetindo: só o déficit) é de quase R$ 125 bilhões – ou quatro vezes mais que toda a verba “impositiva” em torno da qual se descabelam políticos, governo, mídia e “especialistas”. Não gostou do número? Então experimente esses: serão R$ 95 bi para a Educação, R$ 125 bi para a Saúde, R$ 350 bi para a folha de pagamento do pessoal e a caminho dos R$ 700 bilhões para a Previdência.

Os R$ 30 bi, perto desses números, são outra coisa. Você pode continuar achando que é muito – ou que é pouco. Da mesma maneira, você pode achar que os R$ 2 bilhões extorquidos do contribuinte para o fundo eleitoral de 2020 são um roubo e provavelmente são mesmo. Você pode até achar que não deveria haver nenhuma verba reservada aos projetos dos congressistas, por uma questão de princípio. Mas, em qualquer caso, a esperança de debater com lógica essa questão será igual a três vezes zero enquanto a matemática for proibida de entrar na sala.

J. R. Guzzo, jornalista -Vozes - Gazeta do Povo




domingo, 12 de novembro de 2017

A vida de uma “escrava” brasileira

As mordomias da 'ministra escrava' Luislinda Valois = jatinhos e mansões

A [ainda] ministra de Direitos Humanos, Luislinda Valois, choca o País com suas mordomias, desvios e apelos descabidos

O processo de abolição da escravatura no Brasil foi gradual: começou com a Lei Eusébio de Queirós de 1850, seguida pela Lei do Ventre Livre de 1871, a Lei dos Sexagenários de 1885 e finalizada pela Lei Áurea em 1888. Mas a [ainda]   ministra dos Direitos Humanos, [até quando presidente Temer?] Luislinda Valois (PSDB), não gosta de escalas. Ameaça recorrer diretamente à Princesa Isabel se continuar ganhando “apenas” R$ 33.700 por mês, enquanto a renda média do brasileiro é de R$ 1.226. É uma “escrava”, como ela mesmo se autoproclamou ao querer incorporar aos seus vencimentos mais R$ 30.471,10 que recebe como desembargadora aposentada do Tribunal de Justiça da Bahia. Só que escrava de luxo.
LUISLINDA COM ASSESSORES EM NOVA YORK Viagens ao exterior são constantes no dia a dia da ministra que, desde a época de desembargadora, se acostumou ao circuito internacional (Crédito: SEPPIR-PR)

Vida de escravo é difícil, dizia a letra de Dorival Caymmi. Que o diga Luislinda. Além de ganhar salário que encosta no teto constitucional do funcionalismo, ou seja, só a nata dos servidores públicos pode desfrutar desse privilégio, a ministra leva uma vida de mordomias à custa do dinheiro público. Além dos R$ 33,7 mil por mês, a ministra tem direito a jatinhos da FAB para viagens profissionais, apartamento funcional em Brasília, carro com motorista e cartão corporativo. Ela ainda recebe diárias do governo federal, quando viaja. Só em 2017, foram mais de R$ 40 mil.


Isso tudo já a faz ocupar um confortável lugar no pico da pirâmide social, mas sua declaração de bens de 2014 é ainda mais eloqüente ao mostrar que a ministra está mais para Casa Grande do que senzala. 

Praia privada
Luislinda é proprietária de uma mansão no condomínio de luxo Porto Busca Vida Resort, localizado na praia privativa de Busca Vida, em Camaçari, na Bahia. Ela adquiriu o imóvel por R$ 750 mil. Hoje, o local está supervalorizado. Um terreno não sai por menos de R$ 1,5 milhão. Casas prontas, que variam de 300m2 a 1.100m2, custam entre R$ 3 milhões e 7,5 milhões. A ministra Luislinda também possui um apartamento em Salvador, comprado por R$ 330 mil, e outro em Curitiba, no alto da Glória, região nobre, adquirido por R$ 350 mil.
Pedido de recebimento de diárias por finais de semana não trabalhados e
cobrança de verba de R$ 10 mil da União por uma viagem que fez de graça
ao exterior
entraram no rol de acusações contra a servidora “escrava”
Como é possível notar, está mais do que evidente a exploração a que a ministra de Direitos Humanos vem sendo submetida pelo Estado-feitor. Em junho passado, Luislinda cobrou do governo R$ 10.758,68 por uma viagem de cinco dias a Israel. A viagem foi paga pela Confederação Israelita do Brasil (Conib). Ou seja, ela viajou de graça e mesmo assim quis ressarcimento. Verba extra, dinheiro a mais. Sua assessoria diz que ela devolveu os valores no dia 28 de junho. Em julho, ela deu outro “aplique” nos cofres públicos: pediu o ressarcimento de despesas durante final de semana em Salvador, onde reside, sem ter tido compromissos oficiais. Ela não trabalhou no final de semana. Na verdade, ela viajou para a capital baiana no dia 27 de julho, uma quinta-feira, em avião da FAB, para representar o presidente da República na posse de um juiz do TRE da Bahia. Na sexta, a ministra visitou uma escola pública. Ficou em casa descansando no sábado e domingo, mas mesmo assim cobrou as diárias por todos os dias, no valor de R$ 1.985,19.

Ao pedir o aumento salarial, ela explicou que a alta soma se destina a cobrir despesas “necessárias” ao exercício do cargo, como roupas, sapatos, perfumes e maquiagens. “Como é que eu vou comer, beber e calçar?”, disse Luislinda. “É cabelo, é maquiagem, é perfume, é roupa, é sapato, é alimentação”, completou a ministra, que deve fazer Isabel se remexer no túmulo. Com a repercussão negativa do caso, ela voltou atrás, abrindo mão do pedido por mais benefícios, mas ao pedir um salário acima do teto do funcionalismo, Luislinda se desconectou da realidade. Definitivamente, o contribuinte brasileiro não merece ser escravizado pelos privilégios de uma ministra dos Direitos Humanos. Ela parece só olhar para os direitos dela.

Por: IstoÉ -  Tábata Viapiana


domingo, 1 de fevereiro de 2015

É preciso evitar a intolerância religiosa no Brasil

País da convivência íntima entre casa-grande e senzala tem registrado episódios de perseguições que não condizem com tradição 

O radicalismo religioso está na raiz de boa parte das más notícias que, infelizmente, abriram 2015. O mundo se chocou no primeiro mês do ano com o atentado ao “Charlie Hebdo”, em Paris; a execução de reféns do Estado Islâmico; e a destruição da cidade de Baga, na Nigéria — mais uma ação do Boko Haram, na qual teriam morrido duas mil pessoas. São casos de extrema violência que brasileiros repudiam da mesma forma que americanos e europeus. [apesar do nosso repúdio ao terrorismo - inclusive nos orgulhamos de ter combatido tal praga no Brasil, na década de 70 - não entendemos justo comparar os mortos pelo Estado Islâmico e Boko Haram aos do Charlie Hebdo. Mesmo não considerando correto o assassinato de jornalistas do semanário francês, ressaltamos que estes fizeram a escolha ao exercitar humor desrespeitoso a uma religião que tem entre seus seguidores fanáticos.
Já as vítimas do Boko Haram e Estado Islâmico são inocentes  que não escolheram praticar atos que poderiam causar reações violentas. Optaram por desrespeitar a fé dos outros, mesmo sabedores que tal comportamento poderia despertar reações violentas.]

No caso brasileiro, no entanto, a reação vem junto com a percepção de que é pequena a possibilidade de que conflitos de fundo religioso venham a causar estragos da mesma dimensão. E, de fato, no Brasil, as inaceitáveis manifestações de intolerância não resultaram em tragédias comparáveis ao que acontece pelo mundo. Mas convém não confiar no histórico nacional de acomodação de diferenças, do qual o sincretismo religioso é exemplo. O país da convivência íntima entre casa-grande e senzala tem registrado episódios de perseguições a segmentos religiosos que não condizem com a tradição de manter os conflitos dentro do limite administrável. 

A intolerância já tentou censurar até manifestações culturais que são forte elemento da identidade nacional. Recentemente, um grupo de músicos da Estação Primeira de Mangueira, em atitude aplaudida nas redes sociais, recusou-se a atender ao pedido de uma emissora de TV para omitir a palavra orixás ao cantar o samba-enredo. [não podemos confundir religião com manifestação cultural, especialmente para divulgar seitas como se fossem cultura.] Ora, como dissociar as religiões afro-brasileiras do ritmo que é marca da brasilidade? Era uma mãe de santo, a lendária Tia Ciata, que abrigava as reuniões de sambistas em sua casa na Praça Onze no início do século passado, quando eles eram perseguidos pela polícia. Na origem, componentes de bateria tocavam atabaques em terreiros de candomblé. Não há como, de uma hora para outra, simplesmente ignorar herança tão forte.

A sociedade se mobiliza para evitar o pior. Representantes de diversas crenças organizam juntos passeatas na orla exigindo respeito a todas as religiões e dando o exemplo de que, diferenças à parte, é possível agir em conjunto. Reunidos na ABI para tratar do assunto, na semana passada, líderes espirituais cobraram do governo a criação de um Plano Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. Representantes da comunidade muçulmana participam do movimento com especial interesse. Depois do atentado ao “Charlie Hebdo”, eles estão preocupados com a associação de sua crença à violência e a possibilidade de as fiéis sofrerem hostilidades nas ruas por serem facilmente identificadas por causa do véu.

Estão certos em cobrar providências enquanto a intolerância não alimenta tragédias. Se na questão da água tivesse havido ação preventiva do governo e da sociedade, o drama da seca não teria chegado a tal ponto. Vale a lição.

Fonte: Editorial - O Globo