Ascensão da extrema direita populista, ancorada nas redes sociais, traz desafio
O único regime, já escrevi aqui, em que tudo pode é a tirania. Assim é para o próprio tirano e para os seus amigos. A democracia tem interdições. E aí está o busílis. A ascensão da extrema direita populista, ancorada nas redes sociais, traz um desafio. Não raro, sólidas reputações liberais, inclusive neste jornal, confundem, por exemplo, a prática de crimes com a liberdade de expressão, pedra angular da civilidade. E tal confusão é um caminho muito curto para que se tome a liberdade de expressão por um crime.
Assim tem sido nos Estados Unidos, no Brasil e em toda a parte em que a democracia ainda resiste. O momento é delicado. O sistema tem sido refém de uma leitura liberticida de suas próprias premissas. Há uma pergunta, que não é recente, mas que está ainda a pedir resposta adequada: a democracia deve tolerar a ação daqueles que se aproveitam de suas garantias para solapá-la caso cheguem ao poder?Vejam o que se passa nos EUA. Os celebrados "founding fathers" criaram um modelo em que o federalismo se opõe à democracia genuína, de modo que um homem não vale um voto. Os sinais de esclerose são evidentes. Além do samba e do ditongo nasal "ão", podemos ensinar aos gringos como se organiza uma votação eficiente.
É fato: a forma que assumiu o federalismo americano, somada ao subdesenvolvimento da tecnologia do voto, joga o mundo num impasse. Que tomem emprestadas as nossas urnas eletrônicas! Nada impede que se digite lá o número de um estúpido. Mas o resultado, ao menos, sai com mais rapidez. Assim, o modelo em vigor potencializa a ação de um vândalo da democracia como Donald Trump.
Pergunta com resposta que a mim soa evidente, embora pouco haja a fazer por lá —e já vou chegar ao nosso quintal. É moralmente aceitável que um chefe de Estado coloque em dúvida o arcabouço legal que lhe assegurou a vitória quando este está prestes a certificar a sua derrota? E que fique claro: esse "pôr em dúvida" não se limita a um arroubo retórico.
O chefe da nação convoca abertamente suas milícias digitais a entrar em ação, o que, segundo os padrões americanos, pode implicar comparecer ao local da apuração dos votos com um rifle nos ombros para parar a contagem, como pede o bandoleiro. Deve a democracia garantir ao chefe de Estado a "liberdade de expressão" para incitar a luta armada contra as regras do jogo? É preciso, nesse caso, que o moralmente inaceitável seja também um crime punível.
Olhemos para nossos próprios desatinos. A democracia brasileira deve tolerar que Jair Bolsonaro diga asneiras contra as vacinas enquanto faz, com a força da representação, a apologia de drogas comprovadamente ineficazes contra a doença, usando para tanto a visibilidade que lhe confere o aparelho de Estado? [o presidente Bolsonaro é um cidadão que tem o direito a expressar livremente suas opiniões.
Podemos até discutir caso ele emita um decreto proibindo a vacinação - neste caso cabe um pronunciamento superior, baseado nas leis e em dados científicos confiáveis, fundamentados validando os argumentos utilizados na sustentação do decreto proibindo;
mas sua opinião ele tem o direito constitucional de emitir, se quando e com o conteúdo que lhe parecer conveniente.
Ainda mais quando a tão falada vacina ainda é uma hipótese, digamos promissora.
Vale o mesmo para os remédios contra a peste que contam com a confiança do presidente - são remédios de venda controlada (a cloroquina e o antibiótico azitromicina, sendo a ivermectina venda livre por se tratar de um conhecido vermicida) o que leva ao necessário aval de um médico. O presidente estaria cometendo crime, ou tentando, se emitisse um decreto atropelando a Anvisa e liberando a venda livro dos dois primeiros.]
As democracias estavam preparadas para enfrentar aqueles que, à margem do sistema, buscavam se organizar para destruí-la. Seus aparelhos de repressão, diga-se, atuam muitas vezes para esmagar até o protesto justo de oprimidos que só reivindicam direitos, o que é lamentável e tem de ser coibido. O regime, no entanto, tem se mostrado inerme para punir a ação daqueles que o sabotam a partir dos aparelhos de Estado, buscando minar por dentro as suas virtudes. E isso, hoje, é uma ameaça concreta às nossas liberdades.
Reinaldo Azevedo, colunista - Folha de S. Paulo/UOL - MATÉRIA COMPLETA
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