Voltamos aos tempos em que fanáticos cassavam o direito de quem entrava em sua mira
Uma organização de vigilantes digitais que tem origem nos Estados Unidos e age no Brasil de forma anônima, usando como marca as palavras inglesas que significam “Gigantes Adormecidos”, está em guerra aberta contra a liberdade de imprensa. O grupo, cujos responsáveis não se identificam, e com isso não respondem por seus atos perante a Justiça brasileira, pressiona através de sua conta no Twitter empresas privadas que anunciam seus produtos ou serviços em veículos considerados “de direita” - ou, mais exatamente, veículos de cujo conteúdo não gostam.
Querem que elas não anunciem mais nos órgãos de comunicação presentes em sua “lista negra”. A intenção é tirar deles o máximo possível das receitas que faturam com a publicação de anúncios - ou “desmonetizar” os condenados, como diz a organização.
O alvo, no momento, é o centenário jornal Gazeta do Povo, diário com sede em Curitiba, fundado em 1919 e hoje publicado em formato eletrônico. Nem o jornal, nem seus funcionários ou colaboradores praticaram qualquer dos crimes “de imprensa” previstos no Código Penal Brasileiro - calúnia, injúria ou difamação. Não causaram nenhum dano passível de punição. Não fizeram, em suma, nada de errado - a não ser publicar as notícias, opiniões ou comentários que houveram por bem publicar, exatamente como garante o artigo 5 da Constituição Federal para todos os cidadãos. Mas o seu conteúdo não é aprovado pelos vigilantes digitais em ação nas redes - e os anunciantes do jornal foram pressionados a cortar as mensagens comerciais que fazem nele. “Não é bom promover seu anúncio na Gazeta do Povo”, avisam os “gigantes adormecidos”.
Até o fim da semana passada, cerca de 20 anunciantes tinham suprimido seus anúncios, ou prometido suprimir, com medo de começarem a receber ataques da organização no Twitter. Nem sabem a quem estão obedecendo - mas, segundo imaginam, passariam a correr o risco de ver a sua imagem prejudicada junto aos consumidores. Um deles, a Petz, que opera no ramo de produtos para animais de estimação, até agradeceu em público a pressão que acabara de receber. “Agradecida pela sinalização”, disse a empresa em sua conta no Twitter, depois de prometer que vai boicotar o jornal. No caso, porém, a milícia digital não parece contente só com a “desmonetização”. Seus operadores exigem abertamente, também, que a Gazeta demita um dos seus colaboradores, o jornalista Rodrigo Constantino. A resposta que receberam foi: “Não”.
Os “gigantes”, como se vê, querem não apenas legislar sobre o que o diário curitibano pode ou não publicar; querem também escolher quem trabalha lá. Seu lema oficial nessa campanha é “#DemitaConstantinoGazeta”. O jornalista é acusado de ter considerado “normal, num de seus artigos, um episódio de estupro”; a acusação é comprovadamente falsa, mas o veneno não está apenas nisso. Pior ainda é a convicção dessa Polícia da Mídia - apoiada em peso por um grupo de empresas que inclui nomes como Credicard, Renner, Heinz, O Boticário etc. - de que tem o direito de exigir publicamente a demissão de um jornalista que não desobedeceu a nenhuma lei, e cujo julgamento cabe unicamente ao veículo onde escreve e aos seus leitores.
Estamos de volta aos tempos em que bandos de fanáticos anticomunistas cassavam o direito ao trabalho de quem entrava em sua mira repressiva, no mundo cultural dos Estados Unidos dos anos 50. Ou, então, às ditaduras brasileiras de todas as épocas, de Getúlio Vargas ao regime do AI-5 - e das quais O Estado de S. Paulo tem longa experiência, como alvo da violência política, policial e econômica dos “gigantes” da ocasião. Eles estão aí outra vez.
J.R. Guzzo, jornalista - O Estado de S. Paulo - 15 novembro 2020
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