— Os coleguinhas estão enciumados — informou a assessora, referindo-se aos jornalistas do Estadão e da Folha de S.Paulo. — Acham que a Veja tem tratamento privilegiado.
Depois de alguns segundos de silêncio, Fernando Henrique quis saber se me opunha à entrada dos queixosos. —
O senhor é quem decide — saí pela tangente. — Mas acho bom deixar claro
que as fotos estão embargadas até o encerramento da apuração.
Os quatro jornalistas concordaram sem hesitação com os termos do acordo. No dia seguinte, descobrimos que a Folha resolvera antecipar-se à Veja e ao Estadão:
lá estava a foto embargada arrendando um latifúndio de papel na
primeira página. O repórter alegou mais tarde que o editor de Política
se limitara a lembrar aos dois subordinados que nenhum deles estava
autorizado a fechar acordos em nome do jornal. Ainda hoje a foto é
apresentada como prova do presunçoso açodamento de um poço de vaidade.
Tremenda fake news. Fernando Henrique foi vítima de mais uma prova contundente de que a Folha não tem palavra.
Entrevistado pelo programa Direto ao Ponto,
da Jovem Pan, o jornalista Alexandre Garcia resgatou outro episódio
exemplar. Ele era subsecretário de Imprensa Nacional do governo João
Figueiredo quando foi encarregado de escalar o grupo de colegas que
testemunhariam um encontro entre o presidente da República e o
cardiologista Euryclides Zerbini. A pedido de amigos e parentes de
Figueiredo, o médico famoso tentaria publicamente convencer o chefe de
governo a abandonar o cigarro. Foi o que fez quando a conversa ia
chegando ao fim. Zerbini insistiu em saber o que impedia o anfitrião de
livrar-se do vício. A resposta emergiu já com cara de manchete: “Doutor,
eu não paro de fumar porque não tenho caráter”. Garcia assustou-se:
“Imaginei o Hélio Fernandes afirmando na primeira página da Tribuna da Imprensa
que Figueiredo finalmente havia reconhecido que não tem caráter”,
contou Garcia, que foi à luta: por telefone, repetiu aos participantes
do encontro, um por um, o mesmo pedido escoltado pelo mesmo argumento.
“Não use aquela frase, por favor. No Rio Grande do Sul, não ter caráter
quer dizer que a pessoa não tem força de vontade.” Todos prometeram
atender ao apelo, inclusive o enviado pela Folha. Todos cumpriram a promessa, menos a Folha, que incluiu na reportagem a frase que atribuía o tabagismo à falta de caráter.
Entre
leitores capazes de assoviar e caminhar ao mesmo tempo, esses registros
na folha corrida podem ter abrandado a surpresa, mas não o assombro
provocado pela manchete da edição deste 7 de outubro, uma quinta-feira: BLOGUEIRO BOLSONARISTA USA DE INFORMANTE ESTAGIÁRIA DO STF.
Sete
palavras e uma sigla resumem a reportagem, torpe na forma e sórdida no
conteúdo, que se baseou em diálogos telefônicos grampeados pela Polícia
Federal para concretizar uma façanha e tanto. Simultaneamente, a Folha
conseguiu reduzir a farrapos bandeiras que vive hasteando ao som de
tambores e clarins, violentar a Constituição com o estupro do sigilo da
fonte e consumar o parto do jornalismo de delação.
“Blogueiro
bolsonarista” foi a expressão escolhida para esconder a atividade
profissional de Allan dos Santos, que comanda o portal Terça Livre e é
tão jornalista quanto qualquer condecorado com um crachá da Folha. A palavra “informante”, pinçada do jargão policial, tentou transferir para uma fonte o papel que a Folha
desempenhou: dedo-duro. As patéticas trucagens se completaram com o
termo “estagiária”, que confere ares de jovem avoada à brasileira
Tatiana Garcia Bressan, de 45 anos, que trabalhou por 18 meses no
gabinete do ministro Ricardo Lewandowski. Essas piruetas semânticas
tentaram camuflar a verdade vergonhosa: a Folha pariu a
imprensa delatora para transformar em casos de polícia um jornalista e
uma funcionária que o ajudara a ver o Supremo como o Supremo é. Nada do
que Tatiana revela surpreende quem conhece o Pretório Excelso. Num dos
trechos destacados pelo jornal, por exemplo, Tatiana diz que se espantou
ao constatar que os ministros mudam frequentemente de ideia quando
políticos de estimação necessitam de ajuda. Ganha uma viagem só de ida
para a Venezuela quem ainda não sabia disso.
O que seriam “jornalistas de verdade”? Os formados por faculdades de comunicações?
A delação pareceu funcionar. Na edição seguinte, a Folha noticiou que o ministro Alexandre de Moraes anexara a “informante” ao inquérito das fake news
(podem chamá-lo de “inquérito do fim do mundo”; ele atende). A medida
incorporou a delatada ao elenco de depoentes na mira da Polícia Federal.
Previsivelmente, redes sociais trataram de fechar a Allan dos Santos os
espaços que ocupa. Mas o jornal que faz o diabo para derrubar o
presidente fora longe demais. Dois dias depois da feérica entrada em
cena, o caso caiu fora da Folha à francesa — e não voltou a dar
as caras sequer nas páginas internas. O jornalista Nelson Rodrigues
provavelmente teria sugerido que os autores da ignomínia sentassem no
meio-fio, chorando lágrimas de esguicho, até se sentirem prontos para a
expiação da torpeza numa seção “Erramos” de página inteira. Em vez
disso, os envolvidos no espetáculo da infâmia andam murmurando por aí
que só jornalistas de verdade têm direito ao sigilo da fonte.
O
que seriam “jornalistas de verdade”? Os formados por faculdades de
comunicações? De jeito nenhum, garante o editorial da edição de 19 de
junho de 2009, que exaltou o Supremo Tribunal Federal por ter abolido a
exigência do diploma para o exercício da profissão. Trecho: “O que nunca
se justificou — e vai se tornando cada vez mais anacrônico diante da
proliferação do jornalismo pela internet — é restringir-se apenas aos
detentores de diploma específico uma atividade que só se beneficia
quando profissionais de outras áreas — médicos, biólogos, historiadores,
filósofos — encontram lugar nas redações.” Outro parágrafo ensina que
esse tipo de impedimento, “desconhecido na ampla maioria dos países
democráticos, é incompatível com o direito à informação, com a liberdade
profissional e com a realidade, cada vez mais complexa, do jornalismo
contemporâneo”.
Coerentemente, vagas na redação e cargos de chefia
estão ao alcance de gente que nunca viu de perto um professor de
jornalismo. O próprio Otavinho Frias preparou-se para fundar a Folha
moderna na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. É natural
que tenha dispensado da apresentação de diplomas os originários de
outras ramificações do conhecimento humano que hoje integram o primeiro
escalão, como Gustavo Patu, Uirá Machado e Hélio Schwartsman. Erros
cometidos por algum deles não podem ser atribuídos à formação
profissional. Não foi por falta de estudos específicos, por exemplo, que
Schwartsman confessou torcer pela morte do presidente da República. O
que falta é parafuso. Ou juízo. Ou caráter. E o que sempre sobra é a
vontade de fazer bonito nos bares da Vila Madalena frequentados pelos
rapazes da imprensa. Allan dos Santos não é menos jornalista que
carrascos homiziados em colunas de papel. O problema é que não deseja
morte de nenhum adversário político. Pior: não apoia o impeachment de Jair Bolsonaro. Pior ainda: convive muito bem com o presidente da República.
O jornalista alvejado pela Folha
decidiu processar Alexandre de Moraes pela quebra do sigilo da fonte.
É
mais uma evidência de que não houve nada de ilegal nas relações com
Tatiana.
Ainda que houvesse, ele seria beneficiário do precedente aberto
por Glenn Greenwald. Suspeito de envolvimento no roubo de mensagens
trocadas entre juízes e procuradores federais engajados na Operação Lava
Jato, Glenn foi socorrido pelo ministro Gilmar Mendes, que proibiu
qualquer tipo de investigação contra o advogado norte-americano que a Folha,
em nome da coerência, deveria qualificar de “blogueiro lulista”. Caso
alguém insistisse em investigá-los, Allan e Tatiana poderiam incorporar
aos argumentos da defesa a montanha de artigos e reportagens que a Folha publicou em louvor da inviolabilidade do sigilo da fonte.
Já que vai processar Alexandre de Moraes, Allan poderia interpelar a Folha
e a Polícia Federal sobre o vazamento das conversas que teve com a
funcionária do STF. Quem entregou a qual jornalista a transcrição dos
diálogos telefônicos? Vai ser divertido ver a Folha, no esforço para livrar-se de enrascadas judiciais, recorrer ao sigilo da fonte que acabou de estuprar.
Leia também “As soberbas lições de Sobral Pinto”
Augusto Nunes, colunista - Revista Oeste
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