O exemplo mais recente foi registrado nesta quarta-feira (19), quando o ministro Ricardo Lewandowski determinou que os Ministérios Públicos Estaduais e os Conselhos Tutelares tomem medidas para punir pais que não levem suas crianças para serem vacinadas contra a covid-19. Diz a decisão: “Oficie-se, com urgência, aos Procuradores-Gerais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal para que, nos termos do art. 129, II, da Constituição Federal, e do art. 201, VIII e X, do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990), empreendam as medidas necessárias para o cumprimento do disposto nos referidos preceitos normativos quanto à vacinação de menores contra a covid-19”.
A menção à Constituição é vaga. O artigo 129, inciso II, diz apenas que o Ministério Público deve “zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição”. Os trechos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) tratam do Conselho Tutelar, e permitem “representar ao juízo visando à aplicação de penalidade por infrações cometidas contra as normas de proteção à infância e à juventude”. O ECA, no qual se baseia o partido Rede Sustentabilidade em seu pedido ao STF, afirma apenas que: “É obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias” — e prevê multa de três a 20 salários mínimos (de R$ 3.636 a R$ 24.240).
O Ministério da Saúde e a Anvisa, entretanto, não trataram da obrigatoriedade da aplicação da vacina: apenas autorizaram o seu uso em crianças a partir dos 5 anos de idade. A vacina da febre amarela, por exemplo, também pode ser aplicada em crianças, mas não é obrigatória. Já outras vacinas, como a BCG e a da poliomielite, fazem parte do calendário nacional de vacinação das crianças. Em uma canetada, portanto, o ministro transformou a vacinação infantil de autorizada em obrigatória.
É legítimo discordar sobre o que a Constituição deveria dizer. Mas o STF existe para aplicar a Constituição
Ricardo Lewandowski jamais recebeu o voto de um eleitor sequer. É verdade que ele já ocupou cargos no Executivo, e talvez até sinta saudades daquele tempo. Lewandowski presidiu uma estatal na gestão do governador paulista Orestes Quércia (MDB), entre 1988 e 1999. Também foi secretário de governo da prefeitura de São Bernardo do Campo entre 1984 e 1988, na gestão de Aron Galante. O ministro do STF, aliás, nunca passou em um concurso para juiz: ingressou na carreira por indicação (de Quércia, claro), para compor o Tribunal de Justiça de São Paulo. A carreira no Executivo talvez explique as predileções do ministro. Mas não as justifica: elas não deveriam se sobrepor à Constituição.
É preciso fazer, entretanto, justiça com Lewandowski. Apenas dois dos integrantes da Corte (Luiz Fux e Rosa Weber) foram juízes concursados. E o ex-subordinado de Orestes Quércia está longe de ser o único membro do STF a fazer jornada tripla, ora como integrante do Judiciário, ora como legislador não eleito, ora como autonomeado integrante do Executivo. [com todas as vênias, expressamos nossa modesta opinião que o erro maior está no artigo 101 da'constituição cidadã': "Art. 101. O Supremo Tribunal Federal compõe-se de onze Ministros, escolhidos
dentre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade, de
notável saber jurídico e reputação ilibada."
Não estamos entre os que entendem que todo 'bacharel em direito' é capaz de ser possuidor de notável saber jurídico. Mas, convenhamos que exigir de um integrante do STF que seja, no mínimo, bacharel em direito seria algo sensato - apesar de portar tal título não garanta ao portador que saiba redigir uma elementar petição. No Tribunal do Júri e no Parlamento são encontrados semianalfabetos, o que é aceitável por representar o POVO - que em grande parte é analfabeto (vejam os eleitos nas eleições presidenciais de 2002 a 2014).
Entendemos que para ser ministro do STF, o candidato teria que atender, os requisitos exigidos para integrar os tribunais superiores.]
É difícil apontar com precisão quando o tribunal mais importante do país assumiu de vez a função de ocupar o que entendia ser a lacuna deixada pelos outros Poderes.
Mas um dos casos mais emblemáticos foi a votação, em 2011, da legalização da união civil (equiparada ao casamento) entre pessoas do mesmo sexo. Naquele caso, não por coincidência, a tribuna foi ocupada pelo então advogado Luís Roberto Barroso, que defendia o aval do STF à união entre pessoas do mesmo sexo. “O que se pede aqui, em primeiro lugar, que este tribunal declare na tarde de hoje, é que qualquer forma de amar vale a pena”, pediu ele, já no início de sua arguição.
É legítimo discordar sobre o que a Constituição deveria dizer. Mas o STF existe para aplicar a Constituição. Caberia, portanto, ao Congresso decidir sobre uma eventual mudança na legislação. Bastaria modificar a Constituição.
Hoje ministro do tribunal por indicação de Dilma Rousseff, Barroso se tornou uma das faces mais conhecidas do Judiciário ativista.
E ele não faz questão de ocultar a sua tese de que os tribunais, especialmente o STF,
devem ocupar aquilo que enxergam como lacunas deixadas pelos outros dois Poderes.
“O Judiciário ocupou um certo espaço, que é o de atender a demandas sociais que não foram atendidas a tempo e hora pelo Poder Legislativo”, disse Barroso, em
entrevista ao site
Migalhas, logo após tomar posse na Corte.
Esse princípio tem sido aplicado na prática pelo STF nos últimos anos. Veja a lista:
Quem julga o STF?Ao tomarem decisões sem respaldo claro na Carta Magna, os ministros do STF
argumentam, com frequência,
que o que está em jogo são princípios fundamentais, como a igualdade e a liberdade, como estabelece o preâmbulo do artigo 5º da Constituição.
Mas esta é uma meia verdade: o preâmbulo do artigo 5º é concluído com a frase “nos seguintes termos”. Ou seja: aquilo que vem em seguida detalha os termos em que esses princípios são aplicados. Lá estão, por exemplo,
a igualdade entre homens e mulheres, o direito à propriedade e o veto à tortura.
Não vale tudo o que os ministros da Suprema Corte acreditarem ser desejável no momento.O advogado constitucionalista Gabriel Dayan, diretor-executivo da Associação Nacional dos Juristas Evangélicos (Anajure), afirma que o STF se excede quando ignora a vontade popular — expressa por meio dos representantes eleitos. “Enquanto não houver alteração do regramento, depreende-se que a vontade popular é justamente a manutenção ou o aprofundamento dos debates em âmbito legislativo”, afirma Dayan. “
Nada mais coerente que a Casa do povo trate temas pertinentes aos valores morais e aos padrões éticos de comportamento de acordo com a vontade deste e traduza em leis a vox populi.”
Para Daniel Fich, conselheiro do Instituto Brasileiro de Direito e Religião, uma alternativa ao modelo atual seria a implementação de um tempo de mandato definido — ele sugere 15 anos. Assim, a influência individual de cada ministro seria amenizada.
A proposta é, de certa forma, semelhante à da deputada Bia Kicis (PSL-DF): abreviar a aposentadoria dos que lá estão. A idade máxima passaria de 75 para 70 anos. [voltaria aos tempos anteriores à PEC da bengala, que permitiu que pessoas que padecem, de forma crônica, do entendimento que são 'deuses', transformem o que entendem em certeza absoluta = passam a se considerar insubstituíveis.
Imagine: é corrente a piada -"alguns ministros da Corte acham que são deuses. Os demais têm certeza." Aumentar o tempo de permanência dos 'deuses' fortalece a piada, por consolidar nos incautos a ideia de que são insubstituíveis.
Esclarecendo: não estamos defendendo a morte dos senhores ministros, ou sugerindo suicídio (alguns jornalistas assim procederam em relação ao presidente Bolsonaro), mas existe um velho adágio, sempre atual: "Os cemitérios estão cheios de pessoas
insubstituíveis.“
„Os cemitérios estão cheios de pessoas insubstituíveis.“
Fonte: https://citacoes.in/citacoes/584526-georges-clemenceau-os-cemiterios-estao-cheios-de-pessoas-insubstituiv/
„Os cemitérios estão cheios de pessoas insubstituíveis.“
Fonte: https://citacoes.in/citacoes/584526-georges-clemenceau-os-cemiterios-estao-cheios-de-pessoas-insubstituiv/
] Mas o texto não avançou por falta de apoio no Congresso.
Outra ideia que fracassou foi aumentar o número de ministros (ideia que o então senador Magno Malta, conselheiro de Bolsonaro, propôs ainda na época da campanha, mas que nunca decolou). Tampouco avançou o pedido de impeachment do ministro Alexandre de Moraes, apresentado pelo presidente Jair Bolsonaro ao Senado Federal.
A alternativa mais lenta, mas também mais viável, é apostar no processo (natural) de substituição dos ministros. O primeiro indicado de Bolsonaro, Kassio Nunes, tem adotado uma postura ambígua quanto ao ativismo judicial. O novo integrante da Corte, André Mendonça, parece mais disposto a resgatar o espírito original da Constituição. É sempre bom lembrar que o presidente eleito nas eleições de 2022 escolherá outros dois membros do STF. Há alguns anos, isso não parecia algo que devia ser levado em conta na hora de escolher em quem votar. Agora, mostrou-se mais do que necessário.
Leia também “E se o governo mandasse o STF passear?”
Nenhum comentário:
Postar um comentário