Vozes - Paulo Polzonoff Jr.
Num dia qualquer , o parvo e faminto “O Que É Que Eu Tô Fazendo Aqui?” foi sequestrado e intimado a fazer parte de uma sociedade secreta.| Foto: Pixabay
Era um dia assim como hoje. “O Que É Que Eu Tô Fazendo Aqui?”, que de politicamente incorreto e potencialmente perigoso só tinha a cara e o jeito de andar, caminhava à toa pela Vie de las Sinapses, olhando as vitrines e se demorando para atravessar as ruas. Sempre ensimesmado e perdido, o coitado. De repente, um carro parou bruscamente ao lado dele. Do automóvel emergiram dois brutamontes. “O Que É Que Eu Tô Fazendo Aqui?” não teve tempo de fazer nada. Nem de dizer o próprio nome. Quando percebeu, já estava encapuzado e sendo colocado no porta-malas do veículo.
Hoje convencê-lo-ei a nunca, jamais, em hipótese alguma usar mesóclise
O destino era ali perto. Os brutamontes tiraram o capuz de “O Que É Que Eu Tô Fazendo Aqui?” e mandaram que ele agisse com naturalidade. “O Que É Que Eu Tô Fazendo Aqui?” riu e teve vontade de dizer que não sabia agir de outra maneira, mas achou melhor ficar quieto. Entraram os três no Elecubrations Tower, um edifício torto de cinco mil andares, com vista para a Amígdala e o Hipotálamo. Dizia a lenda que apenas o loucos habitavam aquele prédio, mas “O Que É Que Eu Tô Fazendo Aqui?” não conhecia a lenda. Elegantemente coagido por seus raptores, ele entrou no elevador.
Que abriu suas portas amplas, cada qual do tamanho de um nanocampo de futebol, para um corredor aparentemente infinito. Seguiram os três até onde se cruzam as paralelas. Lá esperavam por eles cinco pensamentos estranhos, vestindo trajes ridículos que combinavam moda inca e escandinava. Acho. De algum lugar, soaram trombetas ritualísticas. E até um gongo – ou fui só eu que ouvi? Os brutamontes se afastaram e “O Que É Que Eu Tô Fazendo Aqui?” ficou ali, esperando ansiosamente que alguma coisa acontecesse. Ou que lhe oferecessem ao menos um aperitivo.
Finalmente o mais velho dos pensamentos, “Toda Autoridade Pode Ser Questionada”, deu um passo à frente. As trombetas silenciaram. Com uma voz retumbante, ele pediu desculpas pela rispidez de seus capangas, mas aproveitou a ausência de “Todo Clichê É Uma Porcaria” para explicar que tempos como os que eles estavam vivendo exigiam medidas drásticas. E até um pouco estúpidas. “O Que É Que Eu Tô Fazendo Aqui?” não disse nada. “Toda Autoridade Pode Ser Questionada”, então, achou que era uma boa hora para se apresentar e apresentar os demais.
- Somos a Sociedade Secreta dos Pensamentos Politicamente Incorretos e Potencialmente Perigosos – explicou para um “O Que É Que Eu Tô Fazendo Aqui?” atento, ainda que faminto. – Mas pode nos chamar de SS. É, é. Eu sei. Se preferir, chame de 2S4P1I. Nós nos reunimos aqui todas às quintas-feiras para jogar truco e falar bobagem. E também mantemos um abrigo onde os pensamentos mais politicamente incorretos (aqueles cabeludos mesmo) podem passar toda a vida sem incomodar ninguém.
“O Que É Que Eu Tô Fazendo Aqui?” continuou em silêncio. Até que estava interessante a palestrinha. Foi quando atravessou correndo o salão um pensamento estranho: baixinho, peludo, gordinho e manco. E nu. Passou gritando um “aaaaaahhhhhh!” desesperado. Sem saber se podia rir daquilo, “O Que É Que Eu Tô Fazendo Aqui?” riu mesmo assim. Que se dane!
- Não ligue. Este é o “Tá Tudo Muito Confuso. Não Tô Entendendo Nada!”. Ele é chucro assim mesmo. Como eu falava antes de ser interrompido, somos uma sociedade secreta. Por isso nos vestimos assim, com essas capaz e esses balangandãs. E é por isso também que temos todos esses símbolos aqui atrás, ó. Ah, esqueci de apresentar meus colegas. E de me apresentar. Eu sou o “Toda Autoridade Pode Ser Questionada”. Virei Grão-Doutor depois que “Fumar É Bom” morreu de câncer. À minha esquerda tenho os Grão-Mestres “O STF Está Moralmente Corrompido” e “A Democracia Tem Defeitos” e os Grãos-Graduados “Urnas Eletrônicas Não São Confiáveis” e “O Poder Do Voto É Ilusório”.
- E eu? Não vai me apresentar, não? – perguntou “Ideologia de Gênero É Algo Diabólico”.
- Ah, sim, temos também o “Ideologia de Gênero É Algo Diabólico”. Isto é, enquanto o Departamento Jurídico permitir. - “Toda Autoridade Pode Ser Questionada” soltou um longo e melancólico suspiro. Tão longo que ele ainda está suspirando. Calma. Agora, sim, acabou o fôlego. Retomando: - E é justamente por isso que estamos recrutando pensamentos aleatórios em todos os neurônios possíveis desta cabecinha privilegiada. É que corremos um grande perigo. Estamos sendo exterminados um a um. E às vezes até dois a dois.
- E, desta vez, não é pelo Superego! – esclareceu “A Democracia Tem Defeitos”.
- Não é pelo Superego. Que Deus o tenha! É pelo... Pelo... Pelo... – “Toda Autoridade Pode Ser Questionada” parecia incapaz de mencionar o nome de seu algoz. – Pelo Zeitgeist & a Máfia dos Slogans.
- Zeitgeist é o “Espírito do Tempo” em alemão – explicou o pernóstico “Urnas Eletrônicas Não São Confiáveis”. – E a Máfia dos Slogans todo mundo conhece. Just Do It, Brasil Um País de Todos, Lute Contra a Extinção... Difícil quem nunca se deparou com um desses bandidos.
- E é contra eles que precisamos lutar. Ou pelo menos sobreviver. Nosso truco, nossas bobagens e nosso abrigo para pensamentos politicamente corretos correm perigo. E você, filho, tirou a sorte grande. Você talvez não saiba, mas é uma grande honra fazer parte da nossa sociedade secreta, que já teve filiais nas mentes dos grandes gênios da humanidade. Leonardo da Vinci, Newton, Shakespeare...
- E nas de alguns idiotas também – interveio “O Poder Do Voto É Ilusório”, sem mencionar nomes. E precisa?
Todo mundo riu. “O Que É Que Eu Tô Fazendo Aqui?”, mesmo sem entender a piada, riu também, na esperança de que depois de todo aquele palavrório lhe servissem ao menos um salaminho. As gostosas risadas foram interrompidas mais uma vez por “Tá Tudo Muito Confuso. Não Tô Entendendo Nada!” e seu espetáculo deprimente que unia nudez, banha e histeria.
- E então, filho. Você aceita o desafio? Oferecemos plano de saúde, plano odontológico e participação nos resultados. Dependendo, dá até para ver com o RH se descolam uma vaga no estacionamento para você. Ah, sim, e você também ganha essa roupinha linda aqui – disse “Toda Autoridade Pode Ser Questionada”. Antes que “O Que É Que Eu Tô Fazendo Aqui?” pudesse responder, porém, o Grão-Doutor perguntou. – Qual o seu nome, filho?
- “O Que É Que Eu Tô Fazendo Aqui?” – respondeu “O Que É Que Eu Tô Fazendo Aqui?”.
- Acabei de te explicar. Somos a Sociedade Secreta dos Pensamentos Politicamente Incorretos e Potencialmente Perigosos, a SSPPIPP, mas pode chamar de SS mesmo. A maldade está nos olhos de quem quiser interpretar isso errado. Não tô nem aí. Nós estamos sendo ameaçados. Zeitgeist. Slogans. Etc. Quer se juntar a nós?
- Quero – respondeu “O Que É Que Eu Tô Fazendo Aqui?” só para acabar de uma vez com aquilo e ainda sonhando com canapés e docinhos.
Os grãos-pensamentos se entreolharam. Naquele silêncio mancomunado, cada qual vislumbrava o dia em que, com a ajuda daquele pensamentozinho com cara de parvo ali, recuperariam o controle da mente privilegiada que habitavam.
- Ótimo. Vou mandar providenciar a carteirinha. Mas como é o seu nome, meu filho?
- “O Que É Que Eu Tô Fazendo Aqui?” – respondeu “O Que É Que Eu Tô Fazendo Aqui?”.
- Mas não é possível! Já expliquei duas vezes! Parece que não vai ser dessa vez que nossa sociedade terá um gênio novamente... Qual o seu nome, filho?
- “O Que É Que Eu Tô Fazendo Aqui?” – respondeu “O Que É Que Eu Tô Fazendo Aqui?”.
E ficaram nessa durante algumas horas. Até que a Máfia dos Slogans, liderada pela amazona “A Democracia Corre Perigo!”, invadiu a sala. Zeitgeist veio logo atrás, empunhando a assustadora Espada do Cala-Boca. Os pensamentos politicamente incorretos até tentaram sacar suas armas, mas Zeitgeist & Máfia dos Slogans foram mais rápidos e mataram todo mundo. Menos “O Que É Que Eu Tô Fazendo Aqui?”, que parecia invisível em sua parvoíce.
Enquanto tudo isso acontecia no Elucubrations Tower, não muito longe dali, no Café des Pensées , “Só Sei Que Nada Sei” e “Amai ao Próximo Como a Ti Mesmo”, alheios às ameaças que os cercavam, jogavam dominó.
Paulo Polzonoff Jr., colunista - Gazeta do Povo - VOZES
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