Revista Oeste
Jair Bolsonaro vota no Rio de Janeiro, no primeiro turno das eleições 2022 | Foto: Pedro Kirilos/Estadão Conteúdo Fraser Myers
A eleição presidencial norte-americana de 2016 traz um ponto de reflexão para os brasileiros que não votaram em nenhum candidato no primeiro turno no último domingo. Talvez seja hora de pensarmos como muitos norte-americanos pensaram na época daquela também polarizada corrida eleitoral. Na histórica eleição que deu a vitória a Donald Trump, os eleitores rejeitavam ambos os candidatos, e o pleito de 2016 ficou marcado como “uma eleição entre dois candidatos ruins”. E foi ali que muitos — muitos — republicanos mostraram o que é chamado aqui nos EUA de “single issue voter”, ou “eleitor de questão única”.
Alguns, sem demonstrar apoio incondicional a Trump, votaram no empresário de sucesso apenas pela experiência na economia e em negociações, afinal, a América é a terra da oportunidade. Outros votaram contra Hillary Clinton e sua plataforma de governo que já demonstrava que o Partido Democrata fazia uma guinada severa à esquerda radical. No entanto, como uma grande nação cristã, um dos pontos mais importantes que pesaram a balança a favor do malcriado do Twitter foi o foco “na floresta, e não na árvore”, como dizem por aqui. Principalmente para os eleitores nada nada Trumpistas. O alvo? A Suprema Corte Americana.
Em 2016, em seu último ano na Presidência, Barack Obama teve a chance de nomear um juiz para a Suprema Corte, Merrick Garland, para suceder a Antonin Scalia (nomeado por Ronald Reagan) e que havia falecido em fevereiro daquele ano. Na época, comentaristas políticos e historiadores reconheceram amplamente o juiz Scalia como um dos membros mais conservadores do Tribunal e observaram que Merrick Garland, um centrista para muitos, seria um substituto menos conservador — mudando assim o equilíbrio ideológico do Tribunal por muitos anos no futuro. A confirmação de Garland daria aos democratas uma maioria na Suprema Corte pela primeira vez desde 1970. Com maioria no Senado em 2016, os republicanos não votaram a indicação de Obama, e a decisão que pesasse a balança ideológica da SCOTUS ficou para o presidente eleito em novembro de 2016.
Com uma mancha brutalmente ativista em sua história, o famoso caso Roe vs Wade, processo usado pela Suprema Corte Americana para legalizar o aborto em 1973, muitos cristãos, republicanos, democratas e independentes que são contra o aborto taparam o nariz em 2016, miraram na floresta e ajudaram a eleger Donald Trump. O principal motivo, de acordo com uma pesquisa em 2017, foi exatamente o pensamento voltado para o tribunal mais alto nos EUA: resgatar a maioria na Corte e trabalhar para reverter a lei que nasceu de um ativismo judicial histórico e que já ceifou a vida de quase 63 milhões de bebês desde 1974.
Eleição ganha em 2016, logo em abril de 2017, Neil Gorsuch, um defensor do originalismo na interpretação da Constituição dos Estados Unidos (o que os Pais Fundadores estabeleceram nos documentos) foi confirmado para a SCOTUS através da primeira nomeação de Trump. Em 9 de julho de 2018, o presidente Trump nomeou mais um juiz conservador para a Suprema Corte dos EUA, Brett Kavanaugh, desta vez para preencher o cargo vago pelo juiz Anthony Kennedy, que havia se aposentado.
O vencedor das nossas eleições no segundo turno no Brasil em 30 de outubro indicará dois — DOIS! — ministros para o Supremo Tribunal Federal em 2023. Depois de tudo que vimos nos últimos dois anos, tantas barbaridades inconstitucionais cometidas por aqueles que deveriam respeitar e proteger nossa Constituição, o que mais precisamos testemunhar para fazer retórica pergunta se o Brasil aguenta mais dois Barrosos, dois Alexandres ou dois Fachins — indicados por um corrupto que estava preso e que foi solto exatamente por uma manobra ativista da Corte?
A democracia não é muito boa em muitos aspectos, ou sequer perfeita, mas as instituições democráticas são a forma como resolvemos essas divergências
Para milhões de cristãos nos EUA, o voto em Donald Trump em 2016 tinha um objetivo bem maior que todos nós: a proteção à vida humana. Em uma passagem de uma decisão da Suprema Corte de 1992, no caso Planned Parenthood vs. Casey, o juiz Anthony Kennedy, também nomeado por Ronald Reagan, escrevendo para a maioria, disse: “No coração da liberdade está o direito de definir o próprio conceito de existência, de propósito, de universo e do mistério da vida humana. Crenças sobre esses assuntos não podem definir os atributos da personalidade se forem formadas sob coação do Estado”. Derrubar Roe. v. Wade não encerrará a luta para proteger a vida humana no útero, mas é uma das batalhas mais importantes para os cristãos aqui nos Estados Unidos, principalmente pelo que o caso simboliza no mundo, com eco também no Brasil.
A verdadeira fissura que atravessa a SCOTUS e o STF não é entre os chamados progressistas e conservadores, mas entre aqueles que acreditam que os juízes são super legisladores — a grande maioria hoje no Supremo Tribunal Federal — com poderes para impor sua própria visão sobre a sociedade, e aqueles que acreditam que os juízes são limitados pelo que a lei realmente diz. Podemos escolher o que falar, o que fazer, como votar — mas não podemos escolher as consequências de atos levianos, impensados ou imaturos.
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Ana Paula Henkel, colunista - Revista Oeste