Vozes - Gazeta do Povo
Nesta temporada de pandemia cada vez mais proliferam denúncias de abusos de direitos. Seja na esfera privada, quando alguém se aproveita de uma situação de vulnerabilidade sem o necessário tempero da ética e tenta se locupletar em determinada situação, seja na esfera pública, quando servidores públicos ou agentes políticos usam de sua prerrogativa para cometerem crimes contra a sociedade como um todo. Já pipocam casos de escândalos envolvendo compras superfaturadas de respiradores, ordenação de despesas com valores muito acima da média pela brecha jurídica da “situação de emergência” ou do “estado de calamidade”.
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É flagrante que o
Judiciário tem feito exercícios muito perigosos na panaceia política
brasileira.
Um exemplo
é a nossa corte constitucional.
Reorganizada em 1988 para ser o
grande bastião da democracia, deveria manter o
diálogo respeitoso com os demais Poderes, estes sim, exercidos por representantes diretamente eleitos, e
apenas falar quando chamada para exercer a verdadeira jurisprudentia – para
dizer o direito e declarar a conformidade ou não conformidade constitucional de
determinada norma.
Porém temos visto nos últimos anos
um crescente apreço por uma corrente do chamado
“neoconstitucionalismo”, que busca dar
aos ministros um poder de, além de dizer o direito, criar a
própria norma, no eventual silêncio dos demais Poderes. Ou seja, quando os
Poderes cujos mandatários são eleitos se calam – mesmo
que seja um silêncio deliberado e eloquente, pois “não” também é uma opção de
voto – os “iluminados” do
Poder Judiciário usam sua caneta para trazer à existência determinado
regramento que não ecoou no desejo do povo através de seus legítimos
representantes. Onde estás, ó Democracia?? Vem e acode-nos!
Nesta semana fomos surpreendidos
com o voto do ministro Edson Fachin no Recurso Especial Eleitoral nº
82-85.2016.6.09.0139, nos autos de uma Ação de Investigação Judicial Eleitoral,
sobre um suposto “abuso de poder religioso” em
pleito de 2016. Este assunto tem crescido nos tribunais eleitorais pelo Brasil
curiosamente no momento em que o elemento religioso também passou a ser
relevante (se não decisivo) nas últimas eleições. O
incômodo tem sido sempre naquela premissa de que o povo brasileiro é “burro”
demais para tomar suas próprias decisões, sendo ou tutelado por
coronéis do cabresto, ou seduzido pelo “vale-galeto”, ou
imbecilizado pelo pastor no púlpito.
A lei eleitoral – a Lei nº 9.504/1997, veja-se: lei, aquele
diploma que passa por todo um processo perante o Congresso Nacional,
e, depois de aprovado por nós, o povo, é sancionado pelo presidente da
República, eleito por nós, o povo, reconhece três possibilidades de “abuso
de poder” para fins eleitorais.
O primeiro é o chamado
abuso do poder econômico, quando os recursos próprios ou de terceiros é
utilizado para o desequilíbrio do pleito eleitoral. Pode ser verificado pela
ação do próprio candidato ou de apoiadores, com entrega de dinheiro diretamente
ou mediante prestação de bens ou serviços, como a entrega de cestas
básicas.
O segundo é o abuso do
poder político, o chamado “uso da máquina” em benefício de quem já está
investido de autoridade pública, e tem a seu dispor toda a estrutura do Estado
na sua esfera de influência para que possa beneficiá-lo na disputa.
E o terceiro é
conhecido como abuso nos meios de comunicação, também velho conhecido do
cenário eleitoral. Quantas disputas foram desequilibradas em nossa história
recente através da construção ou desconstrução da imagem pública de
candidatos.
Mas,
e o “abuso do poder religioso”?
Este não consta do Código Eleitoral
Brasileiro. A laicidade brasileira sempre respeitou a religião como grande
parceira e colaboradora do Estado na promoção do bem comum – como temos
repisado aqui na coluna. O zeitgeist atual, porém, tem na
religião uma “ameaça” à estabilidade das instituições (ou da manutenção de
certa ordem de subserviência ao status quo) e tem-se avolumado um
olhar de desconfiança ou de reprovação quanto à dimensão pública da fé
religiosa. Aquela que vai acabar mostrando que a religião é, sim, uma parte
indissociável da própria cidadania para que seja exercida em sua plenitude. E,
lembremos, a cidadania é um dos fundamentos da República (art. 1º, II, da
CFRB/88).
O Código Eleitoral não permite que
candidatos recebam doações, sejam em espécie ou em bens e serviços estimáveis,
por parte de organizações religiosas, e também colocam o próprio templo como um
espaço chamado “de uso comum do povo”, ou seja, por causa do potencial de
aglomeração (saudade desse tempo, antes da pandemia), não é permitida a
campanha eleitoral no espaço físico do templo.
Porém atingir a liderança
eclesiástica por exercer sua vocação de formação política do povo sob seus
cuidados espirituais é, sim, uma restrição à plena dimensão do art. 5º, VI da
constituição. Pois, para além da consciência e crença na dimensão privada, o
Brasil celebra a liberdade para se portar na arena pública de acordo com os
ditames de sua fé. E isto também se refere à escolha daqueles que os
representam na promoção do bem comum através do Estado. Escolher
um candidato político pode muito bem ser, sim, um ato de fé!
Assim sendo, ao entender que
dificilmente o Congresso Nacional irá sancionar lei no sentido de restringir esta
amplitude – lei essa que seria inconstitucional no
seu nascedouro, posto que viola disposição pétrea da Constituição – essa
formação atual do Supremo Tribunal Federal parece querer arrogar-se mesmo a
pretensão de ser um “supremo poder”. [está mais para PODER
ABSOLUTO.] Quando vemos situações horripilantes como os
inquéritos instaurados pelo mesmo órgão que depois vai julgar o feito, mandando
prender opositores, ou seja, o “direito penal da vítima” em ação, e uma
proliferação de decisões que legislam positivamente – criam comandos legais que
não existiam, podemos saber que uma “sugestão” tem poder de muito mais do que a
palavra expressa.
Foi justamente este o fim do voto
do ministro Fachin no recurso acima mencionado. Eis as palavras: “Em face
desses argumentos, venho propor ao Tribunal que, a partir das Eleições deste
ano de 2020, seja assentada a viabilidade do exame jurídico do abuso de poder
de autoridade religiosa no âmbito das ações de investigação judicial
eleitoral”.
A
proposição é, em outras palavras: “não existe LEI para
resolver isso. Mas, como nós SOMOS a lei, proponho
que comecemos a verificar tal situação para as eleições deste ano”.
Mais que uma lástima, soou como uma ameaça, um verdadeiro perigo. Espero,
sinceramente (talvez um sonho inatingível, mesmo pueril), que
um dia alguém se levante naquela bancada, algum ministro ou ministra,
imbuído de verdadeiro espírito público, levante sua voz contra a ameaça do“abuso do Poder Judiciário”.
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