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sábado, 3 de abril de 2021

A ‘crise’ do Brasil de ontem - Revista Oeste

J.R Guzzo

Hoje, nem Bolsonaro, nem os militares demitidos, nem os que foram para o lugar deles podem dar golpe nenhum não no mundo das realidades

Houve um tempo, já faz muito tempo, em que muito jornalista da área política neste país dava a si próprio a obrigação de ler, reler e entender o Almanaque do Exército. Era importante; quem tinha a capacidade de decifrar aquela maçaroca toda de nomes, datas, estrelas, patentes, medalhas e sabe lá Deus o que mais — uma coisa árida, misteriosa e pouco amigável — recebia a qualificação de “bem informado” e, portanto, capaz de compreender o que estava acontecendo no governo e no Brasil. Nunca ficou claro, no fim das contas, para que essas informações realmente serviam, mas o especialista em “almanaque” era um sujeito levado altamente a sério. “Fulano sabe tudo do Almanaque”, dizia-se, com respeito e reverência, nas redações.

Hoje a maioria dos jornalistas nem sabe que existe um Almanaque do Exército e, se por acaso sabe, não acha vantagem nenhuma — porque, muito simplesmente, o Almanaque não serve para mais nada. É consultado, sob a apresentação de senha, por oficiais, cabos e taifeiros, mas, fora isso, não interessa praticamente a mais ninguém. Muito natural: o que adianta, para qualquer efeito prático, saber quem pode ser promovido no Exército, quando e por quê? 
Ou na Aeronáutica e na Marinha? Não há como ficar bem informado sabendo nada disso. Já foi importante — hoje não é. Não é porque as Forças Armadas e seus oficiais deixaram de ser o que eram. 
São outra coisa, num outro país e num outro tempo.

A demissão dos três comandantes militares, todos de uma vez só, e nas vésperas do dia 31 de março, poria a terra em transe, no Brasil daqueles tempos. Acaba de acontecer, em sequência à demissão do chefe nominal dos três, o ministro da Defesa, e a vida continua exatamente como era. Não é bom: o país no dia seguinte à demissão coletiva permanecia entregue à pior crise de saúde de toda a sua história, com as “autoridades locaisgerindo uma epidemia que já causou 320.000 mortes, a economia em vias de colapso e milhões de vidas arruinadas pela perda do trabalho. Mas seria pior se, em cima de tudo isso, ainda houvesse uma “crise militar”. Não há.

O presidente Jair Bolsonaro, obviamente, não quis mais saber do seu ministro da Defesa e dos chefes das três Forças — cansou de olhar para o lado deles, buscando apoio contra os inimigos do seu governo, e ver que não havia ninguém em casa. 
Os comandantes, por sua vez, deixaram mais do que claro que não querem dar nem sequer uma volta no quarteirão para ajudar o presidente a reforçar a sua autoridade. 
A tese preferida na oposição, junto aos professores de ciência política e entre os economistas de centro-esquerda, é que Bolsonaro queria dar algum tipo de “autogolpe” e que os “militares” se recusaram a participar, em obediência às suas convicções democráticas. Disso estaria resultando uma crise política descomunal — e essa crise, além do mais, poderia dar ruim para o presidente, pois a “tropa”, indignada com as ameaças à democracia por parte do governo, iria tomar alguma providência.
O problema dessas histórias, contadas pelos peritos que a mídia vai buscar nas universidades para dar entrevistas e participar de mesas-redondas, é que nem Bolsonaro, nem os militares demitidos, nem os que foram para o lugar deles podem dar golpe nenhum — não no mundo das realidades. O presidente pode se livrar, como se livrou, de todos os generais, almirantes e brigadeiros que lhe faziam cara feia
Mas golpe militar, em nosso século 21, tornou-se uma dessas coisas que não se fazem mais. Nem é uma questão de ser a favor ou contra, de acreditar ou não no estado de direito, na Constituição e nas “instituições” – é que, na prática, não dá para fazer. 
“Botar a tropa na rua”, fechar o Congresso e tomar a torre de transmissão da Globo depende de várias coisas: nenhuma delas está disponível no momento. Golpe, venha de onde vier, precisa de liderança clara nos quartéis. 
 Precisa de uma lista muito exata das coisas que serão feitas na vida real, imediatamente depois do golpe. 
Precisa de um programa de governo. Precisa de apoio, ou da indiferença, internacional. Precisa de ideias. Nada disso existe.
 
Militar transformou-se em profissional
Não é que haja alguém disposto a mexer uma palha em defesa do Supremo ou do Congresso. Não há ninguém, fora das classes intelectuais e das suas adjacências, ligando a mínima para nenhum dos dois; 
- provavelmente haveria uma salva de palmas e festa nas ruas se fossem fechados sem data para abrir de novo
Mas também não há ninguém capaz de juntar o Exército, a maioria da opinião pública e as principais forças da sociedade para dar um golpe. 
A última vez que isso aconteceu foi há quase 60 anos, em 1964. E foi justamente o regime que se criou na ocasião, por mais que isso desagrade aos analistas políticos, que acabou de vez com a agitação militar que sempre envenenou a vida política do Brasil. 
A partir de 1964, todo e qualquer general, depois de dez anos no posto, vai para casa — não há exceções, e com isso acabou a possibilidade de os oficiais superiores criarem partidos próprios em seu benefício dentro do Exército, da Marinha ou da Aeronáutica
Sumiu a figura do “general forte”, ou do “brigadeiro influente”. Militar, de lá para cá, transformou-se em profissional; um oficial só é promovido por mérito e outros critérios objetivos, e a disciplina é o valor número 1.

Os militares brasileiros de hoje, na verdade, são funcionários públicos basicamente iguais a todos os outros

Têm preocupações específicas com o desenvolvimento do submarino nuclear e do caça supersônico, com a defesa da Amazônia e com o suporte a uma série de ações civis, mas é isso. 
Não pensam em fazer política ou “influir” na vida do Brasil; 
cumprem as tarefas que recebem dos superiores, mais ou menos como a Receita Federal recolhe impostos e o Correio distribui cartas. 
Estão prestando atenção no soldo, na aposentadoria e na licença-prêmio convertida em “pecúnia”. 
No caso da demissão dos três comandantes ao mesmo tempo está se tentando, desde o primeiro dia, achar uma crise — seja porque os chefes cumprimentaram o presidente com o cotovelo, seja porque o novo ministro da Defesa não é o mais “antigo”, seja porque o general Mourão estaria inquieto, seja por outra razão qualquer. 
Tudo serve. Mas crise mesmo não há — fora da imprensa, do mundo político e dos especialistas. 
Os militares gostaram? 
Não gostaram? Tanto faz. Hoje em dia ninguém mais tem medo de militar nenhum, nem do que eles possam fazer.

Bolsonaro não pode mandar um cabo e um praça fecharem o STF, como 99% — vá lá, 95% — dos seus admiradores gostariam muito que ele fizesse. Os “militares”, por sua vez, não podem derrubar o presidente — ele só sai de lá com eleição. Em matéria de crise, chega a que já está aí todos os dias.

Leia também o artigo de Guilherme Fiuza nesta edição, “Puxando o tapete da democracia”

 

J.R. Guzzo, jornalista - Coluna na Revista Oeste 

 

domingo, 8 de março de 2020

Apelo às massas - Nas entrelinhas

Com o PIB de 1,1%, Bolsonaro tenta se vacinar e responsabilizar o Congresso pelo eventual fracasso. Não é o primeiro a apelar às massas quando o governo vai mal das pernas

Com o restabelecimento do presidencialismo em janeiro de 1963 e a ampliação dos poderes do presidente João Goulart — que havia assumido o cargo após a renúncia de Jânio Quadros, não sem antes ter que derrotar uma tentativa de golpe militar (sic) para impedir sua posse —, a implementação das chamadas reformas de base passou a ser o eixo da disputa política nacional. Goulart apresentou às lideranças políticas um anteprojeto de reforma agrária que previa a desapropriação de terras com título da dívida pública, o que forçosamente obrigava a alteração constitucional. Uma segunda iniciativa para agilizar a agenda das reformas foi o encaminhamento de uma emenda constitucional, que propunha o pagamento da indenização de imóveis urbanos desapropriados por interesse social, com títulos da dívida pública.

Essas propostas, porém, não foram aprovadas pelo Congresso Nacional, o que provocou forte reação por parte dos grupos de esquerda, inclusive nas Forças Armadas. Em setembro de 1963, a Revolta dos Sargentos — movimento que reivindicava o direito de que os chamados graduados das Forças Armadas (sargentos, suboficiais e cabos) exercessem mandato parlamentar em nível municipal, estadual ou federal, o que contrariava a Constituição de 1946 — acirrou a polarização ainda mais. Entretanto, isso aumentou o isolamento de Jango, já agravado pelo rompimento com o Partido Social Democrático (PSD) e Juscelino Kubitschek, que era candidato a presidente nas eleições previstas para 1965.

Diante dessa situação, Jango pediu a Raul Ryff, seu secretário de Imprensa, que era membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que agendasse um encontro com o líder comunista Luiz Carlos Prestes. O encontro foi organizado por Antônio Ribeiro Granja, membro do secretariado do PCB, num apartamento em Copacabana. À época, Prestes já articulava a reeleição de João Goulart, o que era inconstitucional, à falta de melhor opção para enfrentar as candidaturas de Juscelino e de Carlos Lacerda (UDN), pois o ex-governador gaúcho Leonel Brizola, cunhado do presidente da República, era inelegível. O conselho de Prestes foi Jango apelar às massas e fazer as reformas de base por decreto. Para isso, os comunistas organizariam comícios populares em todos os estados do país, ao qual Jango compareceria.

A mobilização foi iniciada no dia 13 de março de 1964, com o comício realizado na estação da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, também denominado Comício das Reformas, ao qual compareceram cerca de 150 mil pessoas. Na ocasião, Goulart proclamou a necessidade de mudar a Constituição e anunciou a adoção de importantes medidas, como a encampação das refinarias de petróleo particulares e a possibilidade de desapropriação das propriedades privadas valorizadas por investimentos públicos, situadas às margens de estradas e açudes.

Era o começo de uma escalada fatal para democracia, pois, em resposta ao comício, várias manifestações e “marchas” foram convocadas por setores do clero e por entidades femininas. A primeira, A Marcha da Família com Deus pela Liberdade, ocorreu em São Paulo, a 19 de março, no dia de São José, padroeiro da família. Contou com a participação de cerca de 300 mil pessoas, entre as quais Auro de Moura Andrade, presidente do Senado, e Carlos Lacerda, governador do Estado da Guanabara. A última, no dia 2 de abril, após a derrubada de Jango, levou às ruas cerca de um milhão de pessoas e legitimou o golpe militar de 1964, revelando uma correlação de forças favorável à implantação do regime autoritário.

Novo cenário
Ontem, com sinal trocado, durante uma escala em Roraima, a caminho do encontro com o presidente Donald Trump, em Washington, recepcionado por 400 apoiadores, o presidente Jair Bolsonaro resolveu convocar seus partidários para a manifestação do dia 15 de março, com objetivo de pressionar o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF). “É um movimento espontâneo e o político que tem medo da rua não serve para ser político”, disse Bolsonaro. Na semana passada, havia negado que estava convocando o protesto nas suas redes de WhatsApp, apesar das evidências. Na verdade, o movimento não tem nada de espontâneo: está sendo organizado por grupos de extrema-direita que apoiam Bolsonaro, que também se utiliza de um exército de robôs comandado pelo vereador carioca Carlos Bolsonaro, o 02, seu filho, nas redes sociais.


Há duas motivações aparentes para Bolsonaro convocar a manifestação: manter a pressão sobre o Congresso, que votará os projetos regulamentando a execução das emendas parlamentares ao Orçamento da União; e reforçar os protestos, que estavam sendo esvaziados pelo acordo feito pelo Palácio do Planalto para resolver o impasse em relação ao Orçamento de 2020. Uma terceira motivação, porém, é subjacente: o fracasso do governo na economia começa a lhe subir à cabeça, depois do PIB de 1,1% do ano passado. Além disso, o cenário na economia mundial sinaliza tempos difíceis pela frente, ainda mais com a chegada da epidemia de coronavírus ao Brasil. Bolsonaro tenta se vacinar e responsabilizar o Congresso pelo eventual fracasso. Como vimos, em que pese as diferenças polares, não é o primeiro presidente a apelar às massas quando o governo vai mal das pernas e enfrenta dificuldades com o Congresso. [o governo Jango ia mal das pernas por inúmeras razões, todas de motivação política, começando pelo desejo de implantar o comunismo no Brasil e por Jango não se conformar que se fracassasse nos seus planos, seria expelido do governo - como realmente foi, pelo MOVIMENTO REVOLUCIONÁRIO de 31 de MARÇO de 1964, movimento que contou com o apoio manifestado em passeata com mais de um milhão de pessoas - há 56 anos passados, reunir uma passeata de 10.000 pessoas já era preciso bons argumentos e o clamor popular de apoiar a MANIFESTAÇÃO, imagine 1.000.000 de pessoas. A MANIFESTAÇÃO do próximo dia 15 não fundamenta comparações do anêmico governo Jango - incluindo a (falta de ) prestígio junto à população -  com o do Presidente Bolsonaro = vítima de fatores que independem da sua vontade e competência, incluindo, sem limitar:
- 'guerra' comercial  China x Estados Unidos;
- boicote do Congresso Nacional, que tenta impor um parlamentarismo branco, a maior parte dos projetos do Presidente Bolsonaro - ação que é referendada pelo STF;
- o coronavírus que caminha para uma situação epidêmica, com riscos elevados de se tornar pandemia.
Um dos objetivos da Manifestação do dia 15 é exatamente informar a muitos desavisados a realidade.]

Luiz Carlos Azedo - Nas Entrelinhas - Correio Braziliense


sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

Greve, preços e o futuro da Petrobras - Míriam Leitão




O Globo

A Petrobras enfrenta há 13 dias uma greve de funcionários, mas segundo seu presidente, Roberto Castello Branco, não houve queda de produção. “Até agora nenhum barril de petróleo deixou de ser produzido.” Ele nega que a empresa esteja sendo privatizada aos poucos, mas reafirma que continuará vendendo ativos porque a estatal é a petrolífera mais endividada do mundo. Castello Branco diz que as maiores companhias do setor estão diminuindo sua participação no refino, e é o que a Petrobras pretende fazer. Sobre preços, ele garante: “Até hoje a interferência do presidente Bolsonaro tem sido zero.”

Na semana passada, Bolsonaro usou a primeira pessoa para falar sobre queda dos reajustes: “Eu baixei o preço três vezes”, disse. Roberto Castello Branco garante que a empresa tem decidido os preços livremente. Perguntei o que ele achava que o presidente queria dizer:  Ele é o presidente, tem o direito de falar o que quiser. Uma coisa é a política, outra é a administração de uma empresa. Nós seguimos administrando. O importante é que ele respeita a independência da Petrobras. Ele nunca me telefonou pedindo que baixasse o preço ou fizesse qualquer coisa.

Desde o dia primeiro, há uma greve na Petrobras, mas Roberto Castello Branco diz que espera que o problema seja superado em breve. Equipes de contingência têm mantido a produção e ele tem a expectativa de que os grevistas voltem ao trabalho:
— O Tribunal Superior do Trabalho classificou a greve como de motivação política, porque não existem motivos no campo real. Depois de seis meses de negociação, um acordo coletivo de trabalho foi assinado pela Petrobras e os sindicatos, em novembro, e a empresa vem cumprindo rigorosamente o que foi estabelecido.

Com a venda das ações que estavam com o BNDES, o Estado brasileiro agora tem apenas 50,3% dos papéis com direito a voto. E inúmeros ativos têm sido privatizados, como os gasodutos, a distribuidora, e vai vender grande parte das refinarias. Perguntei, em entrevista na Globonews, sobre a crítica de que, na verdade, a empresa está sendo privatizada aos poucos:  — A empresa não está sendo privatizada, não há nenhum desmonte, como falam. Estamos reenergizando a empresa, tornando-a mais forte e saudável. O Estado brasileiro é o acionista controlador, com 50,3% das ações, e isso não está em discussão. A Petrobras só pode ser vendida quando houver um mandato para isso, do governo e do Congresso. E não há.

Ele nega que a estatal esteja ficando menor. Na opinião dele, ela está “ganhando músculos”: Nós vendemos ativos de baixo retorno que não constituíam parte do negócio principal.

Perguntei se os gasodutos não são parte do negócio. A empresa venderá até a malha de cabos submarinos que traz o gás das plataformas para o continente: — Nós precisamos do serviço de gasoduto, mas não precisamos ser donos dos gasodutos. Era uma atividade que proporciona um retorno para o acionista de 6% a 7%. Se pegarmos esse capital e investirmos no pré-sal, o ganho é de 15%. A Petrobras é ainda a empresa de petróleo mais endividada do mundo. Não vamos esquecer isso. Em 2019, pagamos US$ 20 bilhões e ainda devemos US$ 90 bilhões.

Sobre os preços dos combustíveis, ele diz que no Brasil eles não estão elevados, e que no diesel inclusive está um pouco abaixo da média em 163 países. A Petrobras quer vender oito refinarias, mas permanecerá com as quatro de São Paulo e a Reduc no Rio, e segundo o presidente a empresa vai se concentrar em exploração e produção em águas profundas. Por enquanto, a produção está parada, mas ele diz que a estatal tem metas de ampliá-la, principalmente a partir de 2025: - Em Búzios, nós vamos colocar sete plataformas gigantes com capacidade cada uma de produzir de 180 mil a 225 mil barris/dia.

Segundo ele, a ideia da verticalização das petrolíferas, refletida na máxima “do poço ao posto” está mudando: As maiores empresas de petróleo venderam 89 refinarias nos últimos anos, reduzindo em 30% sua capacidade de refino.  As companhias de petróleo estão entrando em outras fontes de energia, para reduzir as emissões de carbono. A Petrobras, ao contrário, está se concentrando em petróleo:
— Nós estamos aproveitando a riqueza que está no fundo do mar, se não, vai virar museu. Estamos entrando em energia de baixo carbono com o gás natural. E vamos nos preparar para no futuro adquirir competência nos negócios renováveis.

Blog da Míriam Leitão, colunista - O Globo - Com Alvaro Gribel, São Paulo