Filipe Figueiredo - VOZES Maduro
conseguiu uma distração para a população venezuelana. No último
domingo, o governo da Venezuela realizou um referendo com cinco
perguntas referentes à questão da Guiana Essequiba.
As cinco perguntas
feitas representam uma suposta vitória do governo Nicolás Maduro, mas os
cálculos políticos envolvidos são mais complexos e suspeitos do que as
perguntas de um referendo.
Como nunca falamos
especificamente da questão de Guiana Essequiba aqui em nosso espaço,
cabe uma recapitulação. Trata-se de cerca de 160 mil quilômetros
quadrados, algo como dois terços do território da atual Guiana,
ex-colônia britânica, fronteiriça com a Venezuela, que reivindica o
território. A divergência fronteiriça antecede a própria Venezuela,
remetendo ao período das Guerras Napoleônicas.
História, ouro e petróleo
No século XIX a disputa entre a Venezuela independente e o Reino Unido continuou. Claro que a disputa era limitada pela discrepância de forças. O Reino Unido era uma das principais potências do mundo e constituiu o maior império não-contínuo da História, governando cerca de um quarto de toda a terra seca do planeta.
A Venezuela não podia fazer frente, seja no poder militar, no poder político ou na economia.
Quatro
datas são importantes nessa recapitulação histórica. Em 1876 tivemos a
primeira descoberta de ouro na região. Em 1899, uma arbitragem europeia,
apoiada pelos EUA, deu ganho de causa integral aos britânicos, motivo
de suspeições e críticas até hoje. Em 1966, em Genebra, foi assinado um
novo acordo, entre Reino Unido e Venezuela, em que os britânicos
concordavam em negociar a fronteira.
O acordo, na
prática, não decidiu nada, foi mais um dos vários “acordos para chegar
em um acordo” na História, mas, para os venezuelanos, significou que os
britânicos reconheceram a fronteira de 1899 como nula, posição não
aceita pela Guiana, que se tornou independente em 1966. Finalmente, em
2015, foram descobertos novos e vastos campos de petróleo na área
marítima de Guiana Essequiba.
Ou seja, longe de ser
um território economicamente desprezível, trata-se de um lugar rico em
ouro, cassiterita, petróleo e gás natural em suas águas. Desde a década
de 1960 o território também serve como grande espantalho patriótico da
Venezuela. Quando o governo de ocasião está mal, brada pela Guiana
Essequiba e cria uma distração para a população, tal qual a Argentina
fez e faz com as Malvinas.
Referendo
O referendo realizado no último domingo é um ótimo exemplo disso. Maduro, inclusive, ensinou em rede nacional como votar no “sim”. Note o leitor que não foi ensinado como seria realizada a votação, mas como votar na posição do governo.
Não é sequer a primeira vez que Maduro faz isso, tendo ordenado exercícios militares na fronteira com Guiana no ano passado e em 2018.
As cinco perguntas, na ordem,
rejeitam a arbitragem de 1899, reforçam o acordo de 1966, rejeitam a
jurisdição da Corte Internacional de Justiça, rejeitam a suposta
“disposição unilateral” dos limites marítimos pela Guiana e criam o
“estado de Guayana Esequiba”, com um “plano acelerado de atendimento
integral à população”, incluindo a concessão de cidadania e de
documentos venezuelanos.
As duas primeiras perguntas
já foram explicadas. A terceira pergunta, ao rejeitar a jurisdição da
CIJ, na prática, rejeita a possibilidade de uma nova arbitragem
internacional e força uma negociação direta entre Venezuela e Guiana.
Agora, é a Venezuela que é o país mais forte da conversa. Já a última
pergunta aplica o manual russo implementado na anexação da Crimeia em
2014 e dos quatro oblasts ucranianos em 2022.
Segundo
o governo venezuelano, tivemos “dez milhões de votos”, com cerca de 95%
de aprovação em cada pergunta. Esse número, caso seja de eleitores,
corresponde à metade do eleitorado venezuelano, embora, por exemplo, nas
eleições parlamentares de 2020, apenas 30% dos eleitores compareceram.
Mesmo os números oficiais são questionados nos últimos pleitos
venezuelanos.
A
questão é que pode existir uma maquiagem contábil aqui. Os “dez milhões
de votos” corresponderiam a pouco mais de dois milhões de eleitores.
Como cada um respondeu cinco perguntas, seriam dez milhões de votos. Ou
seja, o comparecimento eleitoral seria de risíveis 10% do universo
total. O fato é que essa vitória, independente dos números oficiais,
será vendida por Maduro como um respaldo popular para as ações
venezuelanas.
Diplomacia ou ação militar
Temos dois caminhos principais aqui. O primeiro é o da negociação por vias diplomáticas. Nesse caso, pesa contra a Venezuela o fato de o atual governo não ser exatamente prolífico em amigos, além de a Guiana considerar o tema como encerrado. No caso de uma solução negociada, o Brasil pode, e precisa, desempenhar papel importante, por ser uma crise também em suas fronteiras.
Outro
caminho é o da ação militar. A Guiana não dispõe de forças armadas
propriamente ditas, mas de um exército com menos de cinco mil militares,
um componente aéreo com alguns aviões de transporte e uma guarda
costeira com algumas lanchas obsoletas.
A Venezuela, mesmo em crise
econômica, dispõe de recursos militares vastamente superiores e teria
uma vitória fácil.
Fácil como a do Iraque sobre o
Kuwait em 1990. E o exemplo histórico não é aleatório. A comunidade
internacional foi rápida em condenar as ações iraquianas como uma guerra
de agressão ilegal e uma força internacional, liderada pelos EUA e custeada principalmente pelos sauditas, derrotou o Iraque em alguns
meses. Naquele período, as forças armadas iraquianas eram das mais
formidáveis do mundo.
Se a Venezuela invadir a
Guiana, a possibilidade de um porta-aviões dos EUA na costa venezuelana
em questão de semanas é enorme. Além de ser uma hipotética guerra de
agressão, a Guiana possui um grande aliado nessa crise: o fato de suas
reservas de petróleo e gás já estarem sendo exploradas por empresas
estrangeiras, especialmente a gigantesca Exxon Mobil dos EUA.
Manobra políticaO governo Maduro pode estar recebendo mensagens incentivadoras de potências interessadas em um conflito na vizinhança dos EUA,
mas essas potências, mesmo podendo exercer seu veto no Conselho de Segurança da ONU, pouco poderiam fazer para socorrer na prática os venezuelanos. E a Venezuela não teria como resistir longamente contra uma ação militar dos EUA, a verdade é essa.
Como já explicamos aqui,
Maduro depende dos militares para se manter no poder. Ou seja, uma
guerra não depende apenas dele. Uma guerra também seria uma tragédia
para o Brasil, pois poderia abrir caminho para maior presença militar
estrangeira na Amazônia. Também geraria um fluxo de refugiados
considerável. Ou seja, é evidente que é do interesse do Brasil evitar
uma guerra ali.
Até o momento, as ações diplomáticas
brasileiras estão conseguindo algum efeito. Finalmente, existe outro
aspecto, apontado tanto pela direita venezuelana quanto pelo Partido
Comunista do país: Maduro, além de repetir o roteiro de usar uma grande
distração patriótica, pode estar gestando uma crise intencional que
justifique a suspensão ou adiamento das próximas eleições.
Por
exemplo, em caso de Estado de Defesa, pela lei venezuelana, citada
pelos atores políticos locais, a eleição seria suspensa. Novamente, isso
não é uma invenção de Maduro, sequer da Venezuela, mas tudo pode não
passar de alarmismo para justificar uma ação política interna. No fundo,
Maduro sabe que invadir a Guiana seria o fim da causa de Essequiba. E o
fim de seu governo.
Filipe Figueiredo, colunista - Gazeta do Povo - VOZES