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domingo, 17 de dezembro de 2023

O bonde da vida passa - Dartagnan da Silva Zanela

         O poeta Manoel de Barros dizia que ela gostava, mesmo, das coisas úteis quando elas se tornavam imprestáveis. Claro, ele não disse isso nesses termos xucros não; o poeta das "pré-coisas" confessou-nos esse gosto, daquele jeito que apenas ele sabia fazer.

No caso, foi assim: "prefiro as máquinas que servem para não funcionar: quando cheias de areia de formiga e musgo – elas podem um dia milagrar de flores".

Há outras passagens na obra do poeta em que ele nos chama a atenção para a belezura, para a importância singular daquilo que não tem serventia alguma neste mundo escravizado pela batuta das funcionalidades mil, mas, confesso: essa é uma das minhas prediletas.

Bem, independente de todas as sutilezas captadas pelo poeta, e de todos os xucrismos rasurados pelo escrevinhador, verdade seja dita: quando a utilidade é elevada à condição de suprema categoria, tomando o lugar da beleza, da bondade e da verdade, a vida, inevitavelmente, torna-se uma estrovenga, uma tranqueira maquinal sem igual, porque tudo aquilo que preenche a vida de sentido e plenitude não pode ser reduzido para caber direitinho na caixinha das utilidades sem valia alguma.

Seguindo por essa trilha, penso que o filósofo Miguel de Unamuno colocou o dedo na ferida quando, de forma provocante, nos chama a atenção para os perigos que pairam sobre os corações que procuram colocar as utilidades vazias no centro da vida.

Dizia ele, no comecinho do século XX, que ao ver um bondinho passar, sabia muito bem qual era a sua serventia: levá-lo até a casa da sua mulher amada. Quanto a sua amada, ele sabia que ela não tinha utilidade alguma. E não tinha porque ele a amava com toda intensidade da sua alma. Se tivesse alguma utilidade, não seria sua musa, não seria a senhora do seu coração, mas apenas um brinquedinho que ele usaria, desumanizando-a, quando bem deseja-se, para obter algum prazer egoísta eventual.

E vejam como são as coisas: quantas e quantas vezes nós desprezamos algo, ou alguém, por considerarmos que essa informação, ou aquela pessoa, não teriam nenhuma serventia aparente em nossa porca vida. Infelizmente, tal atitude, é mais frequente do que gostaríamos de admitir e, por isso, não é à toa, nem por acaso, que a nossa capacidade de discernimento vem, dia após dia, ficando cada vez mais embotada.

Quando a categoria da utilidade toma o lugar da verdade, da bondade e da beleza, a poesia e a literatura tornam-se instrumentos políticos de qualidade duvidosa, a filosofia e as tradições religiosas viram meras ferramentas ideológicas de manipulação, e o amor acaba sendo tão somente um palavreado meloso e mal intencionado, usado por almas sebosas para servir-se maliciosamente do próximo.

Tendo isso em vista, o filósofo Byung-Chul Han nos lembra que uma sociedade obcecada pela utilidade das coisas, e das pessoas, é incapaz de compreender o que significa uma vida vivida com plenitude e intensidade; por isso, não nos impressiona nem um pouco ver como a sensação de cansaço e tédio encontra-se estampada nos olhos de muitos, que seguem suas vidas de forma sorumbática e num passo claudicante.

Dito de outro modo, de tanto reduzirmos a vida a categoria da serventia, acabamos por perder o real contato com as pessoas e terminamos, de quebra, por perder a proximidade conosco mesmo, com nossa humanidade.

É engraçado – na verdade não é – vermos as pessoas atarantadas, preocupadas em não perder seu precioso tempo, ao mesmo tempo que matam, sem dó, todo o tempo livre que dispõem dedicando-se a "utilíssimas preocupações".

Ninguém tem tempo para brincar com uma criança porque todos nós estamos ocupados com algo supostamente importante. Poucos são aqueles que realmente param para ver um filme, sem ficar dando aquela olhadela marota, para verificar as últimas atualizações das nossas redes sociais. Raras são as pessoas que tem disposição para ver um pôr do sol, em silêncio, com a pessoa amada, com os filhos ou com os amigos, porque estamos todos muito ansiosos com tudo aquilo que não começamos e nem iremos terminar. E assim, bem desse jeitão, matamos nosso tempo e, de brinde, a nós mesmos, destruindo o que há de mais precioso na vida.

Aliás, há uma cena no último episódio da série "The Ranch" (se não me falha a memória), da Netflix, onde o patriarca da família, Beau Bennett, está com um álbum de fotografias nas mãos dizendo para o seu filho, Colt Bennett, que não havia uma única foto naquela álbum de família onde ele estivesse junto com eles
Em todas as ocasiões especiais da família ele estava resolvendo alguma coisa "importante".  
Tão importantes que ele não lembrava de nenhuma. E ele perdeu tudo o que era especial em sua vida por coisas que ele não sabia o que eram, mas que receberam dele uma atenção descabida.

Enfim, por essas e outras que "prefiro as máquinas que servem para não funcionar: quando cheias de areia de formiga e musgo – elas podem um dia milagrar de flores", porque vida vivida de forma maquinal pode ser muitas coisas, com mil e uma utilidades, mas nunca será uma existência digna de ser chamada de vida plenamente vivida.

    O autor, Dartagnan da Silva Zanela, é professor, escrevinhador e bebedor de café. Mestre em Ciências Sociais Aplicadas. Autor de "A Bacia de Pilatos", entre outros livros.

 

 

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Espinhos do recesso - Nas entrelinhas

Esquentam a disputa pelo comando da Câmara dos Deputados e a polêmica jurídica sobre a Lei da Ficha Limpa, flexibilizada pelo do STF ministro Kassio Nunes Marques

No jargão jornalístico, flores do recesso são os assuntos que tomam conta do noticiário político quando o Congresso e o Judiciário estão sem funcionar, geralmente alimentados pelo Executivo, pelos candidatos ao comando da Câmara e do Senado e pelos ministros de plantão no Judiciário. São tão frondosas como as flores da primavera, porém, menos decisivas do ponto de vista do processo político. Entretanto, nesses tempos bicudos de pandemia do novo coronavírus, com mais de 190 mil mortos e sem data marcada para o começo da vacinação, estamos diante é de flores com espinhos.

As principais são a disputa pelo comando da Câmara dos Deputados, que a oposição encara como uma espécie de batalha de Stalingrado, para conter o avanço de Jair Bolsonaro rumo à reeleição à Presidência da República, e a polêmica jurídica sobre a Lei da Ficha Limpa, cuja flexibilização, pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Kassio Nunes Marques, o novo integrante da Corte indicado pelo presidente, supostamente possibilitaria — entre outras — a candidatura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao Palácio do Planalto em 2022. Esse seria o adversário que Bolsonaro gostaria de ter no segundo turno, para uma espécie de vitória de Waterloo particular. Essas duas disputas, durante o recesso, podem nos trazer alguma emoção política, ao lado da polêmica sobre as vacinas contra a covid-19.

Há momentos que catalisam as forças da história e mudam o seu rumo. A Batalha de Stalingrado, por exemplo, durou um pouco mais de seis meses, do fim de julho de 1942 até 2 de fevereiro de 1943, tempo suficiente para mudar os rumos da guerra, ao preço de 1,5 milhão de mortos. Teve quatro fases distintas: a avassaladora ofensiva alemã; a obstinada reação russa, ao norte e ao sul, que cercou as tropas alemãs; a fracassada tentativa de Hitler de socorrer seu exército; e a rendição do que restou dele, faminto, sem combustível nem munição.

Mesmo com a vantagem numérica, os alemães não conseguiram vencer a resistência do Exército Vermelho, em razão do conhecimento do terreno, das condições climáticas, da experiência em batalhas de rua, das táticas antitanque, da artilharia de barragem e da capacidade logística. O exército alemão rendeu-se em 2 de fevereiro, com cerca de 91 mil soldados, entre eles 22 generais. Entretanto, 11 mil alemães decidiram lutar até a morte, dois mil foram mortos, e os demais foram levados presos. O resto da história todos conhecem.

Napoleão
Outra batalha decisiva foi a de Waterloo, na Bélgica, que durou menos de 24 horas, envolvendo forças francesas, britânicas e prussianas. Iniciada a 18 de junho de 1814, a guerra colocou, de um lado, Napoleão Bonaparte que já havia sido derrotado na Rússia e seu exército de 72 mil homens recrutados às pressas, e de outro, o exército aliado de 68 mil homens comandados pelo britânico Arthur Wellesley, duque de Wellington, composto de unidades britânicas, neerlandesas, belgas e alemãs, reforçado, mais tarde, pela chegada de 45 mil homens do exército prussiano.

Napoleão havia fugido da ilha de Elba a 26 de fevereiro de 1815, em direção ao sul da França, e logo conseguiu apoio popular para fazer frente a Inglaterra, Prússia, Áustria e Rússia, montando um exército com 125 mil homens e 25 mil cavalos. Marchou para a Bélgica, a fim de impedir a coalizão dos exércitos inglês e prussiano. Ao alcançar Charleroi, o exército de Napoleão dividiu-se em dois, com uma parte seguindo em direção a Bruxelas, para encontrar as tropas de Wellington, e outra, comandada pelo próprio Napoleão, em direção a Fleuru, contra o exército prussiano de Gebhard von Blücher. A ideia de Napoleão era derrotar um de cada vez.

Napoleão venceu os prussianos na chamada Batalha de Ligny. Partiu, depois, para Waterloo, onde encontrou os ingleses, em 17 de junho, em solo encharcado, que dificultava o posicionamento dos canhões. Estava certo de que as forças prussianas não se reagrupariam e chegariam a tempo para socorrê- los. Seu erro foi dar a tarefa de perseguir os prussianos em retirada ao marechal Grouchy, “homem medíocre, valente, íntegro, honrado, confiável, um comandante de cavalaria de valor várias vezes comprovado, mas um homem de cavalaria e nada mais”, nas palavras de Stefan Zweig, em Momentos decisivos da humanidade (Record).

Iniciada a batalha, a artilharia inglesa surpreendeu Napoleão, com um novo armamento: granadas. Mesmo assim, os franceses avançaram e deixaram Wellington por um fio. Entretanto, o general prussiano Blücher enganou os franceses. Encarregado de persegui-lo, Grouchy recusou-se a voltar para Waterloo, apesar dos apelos de seu Estado Maior, que tomara conhecimento do início da batalha contra Wellington; para não contrariar as ordens que recebera, continuou em busca das tropas prussianas, supostamente em retirada. Blücher, porém, flanqueou os franceses e chegou em socorro de Wellington; as tropas de Grouchy, o disciplinado marechal, não. A contraordem de Napoleão, pedindo a sua ajuda, chegara tarde demais.

Nas Entrelinhas - Luiz Carlos Azedo, jornalista - Correio Braziliense

 

quarta-feira, 22 de julho de 2020

Disciplina lá, resiliência aqui - Alon Feuerwerker

Análise Política 


O G1 traz interessante reportagem sobre o sucesso do combate à Covid-19 na Mongólia, onde simplesmente não se registraram até agora transmissões locais do SARS-CoV-2 (leia). E nenhuma morte. Sim, zero mortes.

A receita? Medidas precoces, como fechamento radical de fronteiras, monitoramento estrito de possíveis casos e casos confirmados e, principalmente, alta disciplina social na implementação de providências de isolamento e afastamento.

[Um comentário se faz necessário:
 o 'excesso de democracia' e a judicialização de qualquer detalhes, só atrapalham o combate ao coronavírus.
Em certas situações o BEM ESTAR da população de um país exige medidas draconianas, que implicam em mínima discussão o que impõe necessidade da centralização, que no interesse maior tem que tornar dispensáveis longas e quase sempre estéreis discussões.]

Mas nem tudo são flores. Lá, como cá, cresce a pressão pelo afrouxamento das medidas draconianas. Lockdowns são como as guerras: relativamente fáceis de entrar, bem mais difíceis de sair.
E o efeito de longo prazo na popularidade dos governantes?

Por aqui, num país recordista em números complicados, as pesquisas mostram que Jair Bolsonaro começa a se recuperar do algum sofrimento que a popularidade dele viveu nos meses recentes (leia). O presidente da República parece manter a resiliência.
Aguardam-se os próximos capítulos.

Alon Feuerwerker, jornalista e analista político


sábado, 10 de junho de 2017

Pra não dizer que não falei das flores

Temer diz que não sabia quem lhe deu carona no jatinho. Mas não sabia quem deu flores para sua mulher? 

Um homem incauto pode até não saber a quem pertence o jato particular que o transporta, com sua família, de São Paulo para o litoral da Bahia. Mas uma mulher sempre sabe – ou busca saber – quem a presenteia com um buquê de flores. O presidente Michel Temer tenta nos fazer crer que não sabia que o jato era de Joesley Batista, “o falastrão”. Hoje sabemos que Temer não sabia de nada, nada. Mas quem enviou as flores para Marcela Temer foi a mãe de Joesley. 

Esse é o relato do dono do Learjet e da JBS, o Joesley, que diz ter recebido um telefonema de Temer, agradecendo o mimo das flores. Temer nega. Nessa época, ano de 2011, Joesley ainda não gravava as conversas com um de seus cupinchas no Poder, o então vice-presidente Temer. Uma reportagem exclusiva do jornal O Globo, com o piloto do avião e ex-funcionário da JBS José Cerqueira, confirma o agrado para Marcela. Foi o piloto que entregou o buquê em mãos. A versão de que a mãe de Joesley mandara as flores – e não o empresário – serviria para afastar o ciúme de Temer.

Mas por que falar disso numa semana em que “um oceano de provas de propina e corrupção” na campanha presidencial de 2014 foi mandado às favas pelo presidente do Tribunal Superior Eleitoral, o imodesto Gilmar Mendes, o maior marqueteiro da chapa Dilma-Temer? O voo em jato de dono desconhecido, empréstimo anônimo e desinteressado de amigo para amigo, é um “episódio menor” para o atual presidente Temer. Verdade. Hábito trivial em nossa República. Políticos brasileiros viajam de graça em jatinhos de empresários. De graça, não, porque a conta sempre aparece. E quem paga somos nós.

Às favas com os escrúpulos de consciência, disse em 1968 o então ministro do Trabalho e da Previdência Jarbas Passarinho, na edição do AI-5, o decreto que suspendia garantias constitucionais e fortalecia a ditadura militar. Meses antes do Ato Institucional, no mesmo ano de 1968, a música-hino da resistência civil e estudantil “Pra não dizer que não falei das flores”, também conhecida como “Caminhando”, de Geraldo Vandré, foi vice-campeã no Festival da Canção. Só não ganhou o festival por motivos óbvios. E a vitoriosa “Sabiá” de Chico Buarque levou uma das maiores vaias da história do festival. Vitórias e derrotas são muito relativas.

Os momentos do Brasil são diferentes. Nada a ver 1968 e 2017. As garantias constitucionais são respeitadas. A liberdade de expressão também. O julgamento histórico do TSE expôs, sem cortes, para a população e para a imprensa, a divisão entre juízes. Só os índios não contactados até hoje e talvez o PSDB ainda não sabiam de que lado estava a verdade real sobre a dupla mista PT-PMDB. Antes do desfecho, o júri popular já dera seu veredito no embate da ética.

O vencedor por pontos, o ninja Herman Benjamin, resistiu com argumentos, citações e documentos a todos os golpes abaixo da cintura. O derrotado-mor, o imodesto Gilmar Mendes, mandou a justiça, a coerência, as provas e sua própria história recente às favas. O vencedor tinha “aura de relator”, segundo seu adversário, e encantou a todos nós. O vencido pedia para si os louros do julgamento. Gilmar acabou constrangendo apenas a si mesmo ao contorcer a lógica e investir contra a “sanha cassadora” da mídia. Ele uniu contra sua arrogância os brasileiros, caminhando e cantando/braços dados ou não.

Por que então falar de flores numa semana em que caixas um, dois e três para financiar campanhas eleitorais foram desembrulhadas na frente do país para cassar uma chapa fria? Por que falar de jatinho se o que importa mesmo é a Lava Jato, com figurantes como o homem da mala Rodrigo Rocha Loures roubando o papel de protagonistas? Porque o presidente Temer foi flagrado numa mentira pueril. E não dá para mentir. Não agora.

Primeiro, Temer negou ter viajado em avião da JBS e afirmou que só voara em aviões da FAB. Depois, recuou e disse apenas o que todos têm repetido. Ele não sabia. Até o PSDB acha que o episódio do jatinho pode dar fôlego à ruptura. Ah, esses tucanos. Não se lembram mais da canção de Geraldo Vandré: Esperar não é saber/quem sabe faz a hora/não espera acontecer.


Ninguém pode acreditar que Temer não soubesse de quem era o Learjet que levou sua família, incluindo o Michelzinho, de lá pra cá e pra lá, sem cobrar aluguel. A viagem não constava da agenda oficial do então vice-presidente. Assim como o encontro fatídico com o falastrão não tinha registro oficial. Ninguém pode acreditar que Temer não saiba quem deu as flores para sua mulher. Pode ter sido dona Flora Batista, mãe de Joesley. Pode ter sido o próprio Joesley. Temer, conversa com a Marcela. As mulheres sempre sabem.

>> Todas as colunas de Ruth de Aquino

Fonte: Ruth Aquino - Revista ÉPOCA