Não podemos ter exceção para o princípio do devido
processo legal. E o poder do povo seria realmente exercido por seus
representantes se mandantes e mandatários estivessem mais próximos, como
através do voto distrital
Quando alguém grita água, água, água, ou quando clama insistentemente
por pão, ou, desesperado, ainda consegue pedir ar, é porque está
sedento, faminto ou precisa respirar.
Assim, hoje, como todos os dias, a
palavra democracia aparece na televisão, no rádio, nos jornais, nas
tribunas, na boca de políticos e eleitores. A conclusão é que está
faltando; há sede e fome de democracia, sem a qual as liberdades não
respiram e morrem afogadas.
Você não consegue passar um dia sem ouvir ou
ler dezenas de vezes a bendita palavra, na abundância de sua escassez. É
óbvio que os responsáveis por isso somos nós. Nós permitimos e nós os
elegemos.
Os que operam as instituições estão lá em nosso nome.
Os que
escreveram a Constituição e as leis, o fizeram em nosso nome e com o
nosso voto.
Os que fazem funcionar a administração do Estado são nossos
servidores.
Mas tudo isso fica na teoria, porque, na prática, os que
receberam o poder do povo se sentem donos do Estado, da lei e das
instituições enquanto muitos tratados como servos, pagadores dos
impostos que sustentam os Poderes em três níveis — e isso não é
democracia, que é o exercício do poder do povo, regido pela
Constituição.
Há, portanto, uma disfunção institucional. A lei básica
é desrespeitada e, sendo ela desrespeitada, prevalece o arbítrio,
pessoas impondo suas vontades. Se você ler comigo a Constituição, verá
no primeiro artigo que deveríamos ser uma "república federativa" num
"Estado Democrático de Direito", e que "todo poder emana do povo".
Com a
atual distribuição dos impostos, o Brasil é uma república unitária, já
que o Executivo federal centraliza os impostos.
Para ser um Estado
Democrático de Direito não podemos ter exceção para o princípio do
devido processo legal.
E o poder do povo seria realmente exercido por
seus representantes se mandantes e mandatários estivessem mais próximos,
como através do voto distrital — pois, hoje, votam no Parlamento em
desacordo com seus mandantes eleitores.
O segundo artigo da lei básica diz que são
independentes o Legislativo, o Executivo e o Judiciário — nessa ordem. A
ordem hoje está invertida, e o sistema de governo é presidencial só no
nome, pois o presidente tem pouca autonomia.
O Judiciário legisla e
intervém no Executivo. No art. 5º, você lerá: "Todos são iguais perante a
lei, sem distinção de qualquer natureza" — e muitas leis já foram
feitas e até criadas no Judiciário, aplicando distinções. Ao negar a
igualdade, usam a falácia da "ação afirmativa" para discriminar.
O capítulo dos Direitos e Deveres Individuais e
Coletivos é tão fundamental que só pode ser alterado por uma assembleia
constituinte, mas já virou rotina desrespeitar a livre manifestação do
pensamento (IV), a livre expressão (IX), a inviolabilidade do sigilo das
comunicações (XII), o direito de reunião pacífica sem armas (XVI) e o
direito de propriedade (XXII).
O mesmo art. 5º estabelece que não haverá
juízo ou tribunal de exceção, mas inquéritos sem o Ministério Público,
como estabelecem os art. 127 e 129, fazem exceção ao devido processo
legal, essencial em democracia.
O art. 52 diz que presidente condenado fica oito anos
inabilitado para função pública, mas isso foi desrespeitado na
condenação de Dilma Rousseff e foi a porteira por onde começou a passar a
boiada.
O art. 53 diz que deputados e senadores são invioláveis por
quaisquer palavras, mas não têm sido.
O art. 220 garante a manifestação
do pensamento, sem qualquer restrição, sob qualquer forma, processo ou
veículo;
diz que nenhuma lei poderá ser embaraço à informação, sendo
vedada toda e qualquer censura política, ideológica e artística.
Não
preciso dizer a você, que está sedento por democracia, o quanto nos faz
falta cumprir a Constituição.
Alexandre Garcia, colunista - Correio Braziliense