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sábado, 2 de novembro de 2019

Dilemas e conflitos da América do Sul - Míriam Leitão

A América do Sul se debate novamente em protestos e conflitos, em clivagens entre direita e esquerda e, no Brasil, em afrontas à democracia. Na economia da região, o dilema é entre ajuste fiscal e investimentos para a redução da pobreza e da desigualdade, mas o único caminho certo é o que concilia os dois objetivos. Eles são complementares. No Brasil, nesses dias, visitou-se o nosso pior pesadelo pela voz do filho do presidente. A reação das instituições foi tão eloquente quando o silêncio dos militares.

Aqui temos dois problemas. O aperto fiscal erodindo políticas públicas e o pesadelo autoritário que o presidente Jair Bolsonaro e dois dos seus filhos gostam de trazer à tona. Eles não têm o poder de golpear as instituições, mas sim um insistente desejo já manifesto inúmeras vezes. É patológico.  Os militares brasileiros fizeram um longo percurso de recuperação de imagem. Agora suas lideranças envolveram-se numa relação simbiótica com o governo Bolsonaro. É o maior risco reputacional que correm em três décadas. O papel diligente com que têm exercido inúmeras tarefas requeridas pelo poder civil, ao longo dos últimos 34 anos, trouxe-lhes boa imagem. Podem perdê-la nas confusões feitas pelo atual governo, que defende uma ideologia esclerosada e torpe, e entra em confronto com vários grupos sociais ao mesmo tempo.

Os militares da ativa não podem se manifestar politicamente, mas sempre fazem saber seu ponto de vista quando lhes convêm. Os que cercam o presidente Bolsonaro falam claramente, mandam recados ao Supremo e a quem eles pensam ser adversários do atual governo. O silêncio dos militares, da reserva ou da ativa, ficou bem alto nos últimos dias. Uma palavra bastaria para que se soubesse que as saudades da ditadura são sentimentos apenas da família presidencial. Sem essa palavra, fica no ar a ambiguidade. E ela beneficia quem tem tentado intimidar o país.
A questão real que permanece na América do Sul é combater sua enorme desigualdade social. Esquerda e direita democráticas têm reflexões a fazer e pontos a corrigir. A esquerda tende a ver como de direita todas as políticas para ajustar as contas públicas como se o equilíbrio fiscal fosse conservador e condenável.

A famosa frase da ex-presidente Dilma ilustra esse pensamento: “despesa é vida”. Por outro lado, a direita tende a não ter sensibilidade para as enormes distâncias sociais que sempre foram o foco da instabilidade política e econômica da região. Entre disciplina fiscal e gastos sociais com foco nos mais pobres, o melhor é escolher os dois porque só isso tornará o crescimento sustentado e a democracia sólida. Já sabemos, até de tempo recente, que o gasto sem controle produz inflação e crise, o que fere os mais pobres, anulando o efeito das políticas sociais. Também sabemos que sem uma política ativa voltada para os mais pobres a tendência natural é que as transferências públicas favoreçam os mais ricos.

A centro-esquerda governou o Chile muito tempo e, portanto, é parte da herança que explode em revolta contra o governo de Sebastian Piñera, que, por sua vez, usou contra seu povo uma violência desmedida. A Bolívia não pode ficar prisioneira do continuísmo de Evo Morales, nenhuma democracia sobrevive ao quarto mandato do mesmo presidente. Os peronistas cometeram, na última vez que administraram a Argentina, vários erros: gasto descontrolado, intervenção em órgãos que deveriam ter autonomia, populismo tarifário. Voltaram ao poder com as promessas de sempre, mas sem dizer como pretendem enfrentar a inflação alta e a crise cambial. A Venezuela há muito tempo perdeu-se no autoritarismo mais grotesco. 


O Peru foi o mais impactado pela corrupção que o Brasil exportou. Aqui se sabe que a corrupção é duplamente perigosa: desorganiza o país e cria salvadores da pátria que proclamam valores morais que não praticam. Nos últimos dias, em alguns dos países da região, as ruas viveram cenas de revolta. Houve quem tentasse reavivar velhas assombrações. Falsos dilemas têm separado políticas públicas que, se conjugadas, poderiam reduzir o imenso fosso social que sempre mantiveram abertas as veias da América do Sul.

Blog da Míriam Leitão, jornalista - Com Alvaro Gribel - O Globo

terça-feira, 13 de agosto de 2019

O tango argentino - Nas entrelinhas

O peronista Alberto Fernández obteve ampla vantagem sobre o liberal Macri nas primárias para a Presidência, apesar do apoio de Bolsonaro à reeleição do presidente argentino


A derrota do presidente liberal Maurício Macri nas eleições primárias da Argentina pôs em xeque o acordo do Mercosul com a União Europeia, do qual o presidente argentino foi o principal artífice, e estressou as relações do Brasil com a Argentina, em razão da forte reação contrária do presidente Jair Bolsonaro ao resultado. Em solenidade em Pelotas, o presidente da República disse que os gaúchos deveriam se preparar para ser uma nova Roraima, numa alusão à fuga em massa de venezuelanos em razão da crise do regime de Nicolás Maduro. [é lamentável, mas, a declaração de Bolsonaro é profética - basta que o novo governo argentino dure mais que um ano;
para evitar danos ao acordo União Europeia x Mercosul, se em um ano o povo argentino não corrigir o erro que cometeram ao eleger a chapa Kirchner, a solução é expulsar os 'hermanos' do Mercosul.]

O peronista de centro-esquerda Alberto Fernández obteve ampla vantagem sobre Macri nas eleiçõesprimárias para a Presidência do país. Com 99,37% das urnas apuradas, com Cristina Kirchner como vice, teve 47,66% dos votos, e Macri, 32,08%. Roberto Lavagna aparece em 3º lugar, com 8,23% dos votos. O resultado também provocou pânico no mercado financeiro da Argentina: o peso argentino fechou em queda de 15,27%, cotado a 53,5 por dólar — no pior momento do dia, chegou a valer 65 por dólar. A bolsa de valores recuou 37,01%.

Alberto Fernández conseguiu capturar os votos da classe média insatisfeita com a recessão argentina e, com Cristina Kirchner na vice, manter o apoio dos sindicatos argentinos. Porém, sua candidatura não é comprometida com os ajustes econômicos necessários para equilibrar a economia, pelo contrário, é vista como a volta do projeto populista de esquerda.
Macri tenta fazer do limão uma limonada, usando a queda da bolsa e a desvalorização do peso para culpar o adversário: “Precisamos entender que o maior problema é que a alternativa kirchnerista não tem credibilidade no mundo, não gera confiança para que as pessoas venham investir. Eles deveriam fazer uma autocrítica”, disse, ao comentar a repercussão do resultado das prévias na economia. Criadas em 2009, as prévias de domingo foram estabelecidas para escolha dos candidatos de cada chapa, mas, como não houve disputa interna nos partidos, refletiu a atual correlação de forças entre governo e oposição, tendo em vista as eleições marcadas para 27 de outubro.

A situação da economia da Argentina é complicada. O país está em recessão e teve de recorrer ao Fundo Monetário Internacional (FMI), com uma inflação de mais de 55% depois de três anos de políticas de Macri. Mesmo assim, os investidores ainda preferem a reeleição do atual presidente à volta do peronismo. Cristina Kirchner governou entre 2007 e 2015 e adotou um modelo econômico que praticamente afundou a economia, provocando a recessão em que a Argentina ainda se encontra. Nacionalizou empresas, manipulou dados oficiais e causou repulsa aos investidores. Sua estratégia era um meio-termo entre a “nova matriz econômica” da ex-presidente Dilma Rousseff, sua amiga, e o bolivarianismo de Hugo Chávez, que resultou na crise do regime venezuelano de Nicolás Maduro.

Aliança tóxica
Após o resultado das prévias, Macri admitiu que existe uma bronca dos argentinos com sua política econômica, em razão do empobrecimento das famílias. Segundo ele, seu programa de reformas precisa de mais tempo para dar certo. O presidente argentino ainda acredita que poderá convencer os eleitores a apoiá-lo. Entretanto, o apoio do presidente Jair Bolsonaro, que foi muito desejado por Macri, virou uma aliança tóxica, em razão das declarações polêmicas do chefe do Executivo brasileiro. Como a imagem de Bolsonaro no exterior não é boa, os peronistas passaram a associar todo o noticiário negativo do Brasil à imagem de Macri.

Os argentinos são orgulhosos e têm uma velha rivalidade com o Brasil, que estava confinada aos estádios de futebol, mas pode recrudescer em função da eventual interferência do governo brasileiro nas eleições. Um dos temas mais sensíveis, por exemplo, é o caso da tortura. A ditadura argentina foi das mais sanguinárias da América Latina e seus órgãos de segurança mantiveram estreita ligação com seus similares brasileiros durante o nosso regime militar. Cerca de 30 mil pessoas, num período de sete anos, foram sequestradas e mortas, ou seja, um em cada mil argentinos, a maioria jovens, foi assassinado pelos militares. Quatro juntas militares, a partir do último dos seis golpes militares, em 1976, fizeram desaparecer não somente os adversários, mas também seus filhos de até quatro anos, que eram adotados por familiares de militares.

Mães de desaparecidos que começaram a se reunir em 1977 na Praça de Maio para cobrar do governo notícias de seus filhos organizaram uma rede de informações que lhes permitiu localizar mais de uma centena de crianças sequestradas pela ditadura. As Mães da Praça de Maio se tornaram Avós da Praça de Maio. A ditadura acabou em 1983, com a economia do país em frangalhos, depois de uma desastrosa guerra contra o Reino Unido pela posse das Ilhas Malvinas. Com a democratização do país, todos os generais integrantes das juntas militares foram julgados e condenados por tortura, assassinato e morte dos milhares de argentinos.

Nas Entrelinhas - Luiz Carlos Azedo - CB

quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

Lula agora é a Cristina, nos próximos dias será você

Justiça ordena prisão da ex-presidente argentina Cristina Kirchner

A Justiça argentina ordenou o fim do foro privilegiado e a prisão da ex-presidente e senadora Cristina Kirchner (2007-2015) por supostamente acobertar iranianos acusados pelo atentado contra um centro judaico que matou 85 pessoas em 1994, informou nesta quinta-feira à AFP uma fonte judicial. A ordem inclui ainda a seu ex-chanceler, Héctor Timerman, e outros ex-funcionários de seu governo.

Cristina Kirchner é acusada de traição à pátria por ter assinado em 2012 um acordo com o Irã para que os iranianos acusados pelo atentado fossem interrogados em Teerã ou em um terceiro país.  A decisão foi ditada pelo juiz federal Carlos Bonadío, a quem Kirchner se apresentou em outubro, quando apresentou um texto escrito negando todas as acusações.  “Como acontece regularmente na Argentina a notícia vazou primeiro pela imprensa e Cristina ainda não foi notificada”, disse à AFP uma pessoa próxima à ex-presidente.

Cristina Kirchner acaba de tomar posse como senadora, eleita nas eleições legislativas de outubro, e assumirá em 10 de dezembro.  Para que o pedido do juiz seja cumprido, ela deverá primeiro ser submetida a um processo de perda do foro privilegiado no Congresso. Para isso, é preciso que o governo do presidente Mauricio Macri inclua esse pedido em uma convocatória a sessões extraordinárias.  O pedido deverá ser tratado pelo Senado, precisando ser aprovado por dois terços dos presentes.

A partir de 10 de dezembro a aliança governista Cambiemos terá 25 cadeiras (de um total de 72), enquanto o peronismo terá 32. No entanto, apenas dez desses peronistas respondem diretamente a Kirchner.  O processo conduzido por Bonadío foi aberto em razão de uma denúncia do procurador Alberto Nisman apresentada quatro dias antes de ele morrer, em 18 de janeiro de 2015.  “É um grande disparate jurídico. O objetivo desta perseguição judicial é atemorizar os dirigentes da oposição no Parlamento. Querem um Parlamento submisso”, disse a senadora na saída dos tribunais, quando se apresentou ao juiz.

Nesta quinta-feira, também foi preso em sua casa de Río Gallegos, na província austral de Santa Cruz, o ex-secretário da ex-presidente, Carlos Zannini, braço direito de Kirchner.   O magistrado Bonadío também acusou, sem prisão preventiva e com proibição de sair do país, ao ex-titular da Agência Federal de Inteligência, Oscar Parrilli e ao dirigente social kirchnerista Luis D’Elía, entre outros.  O atentado contra o centro judaico AMIA é o mais grave cometido na Argentina, e aconteceu dois anos depois de outro atentado, em 1992 contra, a embaixada de Israel em Buenos Aires.

AFP