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quarta-feira, 8 de novembro de 2023

A bomba de Israel saiu do armário - Elio Gaspari

Numa breve entrevista a uma rádio israelense, o ministro Amichai Eliyahu, encarregado dos assuntos de Jerusalém, disse que jogar uma bomba atômica na Faixa de Gaza é “um caminho”.  
Foi logo suspenso pelo primeiro-ministro Netanyahu, e o líder da oposição, Yair Lapid, pediu sua demissão. 
Eliyahu explicou que falou na bomba “metaforicamente”. 
Tudo bem, mas falou. Jogar uma bomba atômica em Gaza seria maluquice, mas Eliyahu tirou do armário o poderio nuclear israelense.

Para sair da teoria e das metáforas, hoje, num cenário de envolvimento do Irã na guerra, o quadro seria outro, e todos os envolvidos no conflito sabem disso.

Desde as explosões de Hiroshima e Nagasaki, em 1945, militares e civis já cogitaram o uso de artefatos nucleares em campos de batalha. 
Entre 1950 e 1968, três presidentes americanos (Harry Truman, Dwight Eisenhower e Lyndon Johnson) recusaram pelo menos uma dúzia de pedidos para lançar bombas na Coreia, na China e no Vietnã.

Nessa época, um jovem professor americano chamado Henry Kissinger despontava com um livro em que discutia o uso de artefatos nucleares com baixo teor explosivo, como armas táticas.

Pelo lado de Israel, construiu-se uma história de clarividência, tenacidade e astúcia diplomática
David Ben-Gurion começou a tratar da bomba em 1945, logo depois da explosão de Hiroshima. 
Ele era um líder sionista na Palestina, e o Estado de Israel era apenas uma ideia. 
Seu interlocutor era um jovem cientista que fazia explosivos para combatentes da Haganá.

Em abril de 1948, um mês antes da criação de Israel, Ben-Gurion começou a recrutar cientistas. Anos depois, aos 29 anos, Shimon Peres tornou-se diretor do Ministério da Defesa. Ele começaria as conversas com a França para a construção de um pequeno reator em Israel. Ben-Gurion seria claro: — Eu quero a opção nuclear.

Em 1957, Peres fechou o acordo para a construção do reator em Dimona, no Deserto do Negev. Os Estados Unidos desconfiaram desse reator desde a primeira hora. Em segredo, Israel construiu uma usina subterrânea para o reprocessamento do plutônio usado no reator. 
Sete inspeções de cientistas e diplomatas americanos não suspeitaram (ou não quiseram suspeitar) de sua existência.
 
Em 1967, Israel já tinha dois artefatos. Hoje teria entre 60 e 400.  
Seu uso foi chamado pelo primeiro-ministro Levi Eshkol de “opção de Sansão”, aquele que destruiu o templo dos filisteus. 
Ao contrário da Índia, do Paquistão e da Coreia do Norte, Israel nega que tenha as bombas. (Em 1969, o presidente Nixon perguntou a Golda Meir se ela tinha “coisas perigosas”, e ela respondeu que tinha. Quando Golda ia saindo do encontro, ele lhe disse: “Tome cuidado”.)

Por décadas, Israel produziu e estocou artefatos nucleares. Seus desmentidos preservam um segredo de polichinelo. Os inimigos de Israel cultivam uma ilusão, de que um país se deixará destruir sem usar todas as armas de que dispõe. Amichai Eliyahu pode ser um radical aloprado, mas sua “metáfora” reflete a realidade.

Tirando as bombas do armário, ele colocou a discussão da guerra no seu devido patamar. Uma coisa são as operações contra o Hamas em Gaza. Bem outra seria uma expansão da guerra, com uma possível entrada do Irã no conflito. Nesse caso, o risco é outro.

Elio Gaspari, colunista - O Globo


quarta-feira, 18 de outubro de 2023

Se o problema é só a sanguinolência, que tal uma bomba nuclear? - Gazeta do Povo

Bruna Frascolla

 O cogumelo da Little Boy em Hiroxima, de urânio, e o Fat Man, em Nagasáqui, de plutônio.

O cogumelo da Little Boy em Hiroxima, de urânio, e o Fat Man, em Nagasáqui, de plutônio.| Foto: George Caron & Charles Levy/Domínio público
 
Estou preocupada com a prontidão da direita brasileira em aceitar um eventual genocídio em Gaza como uma resposta legítima de Israel aos covardes ataques do Hamas.  
Na caixa de comentários do meu último artigo, não faltaram leitores dispostos a interpretar um cerco a toda uma população como um ataque exclusivo ao Hamas
O ministro da defesa diz que vai deixar Gaza (inteira) sem água nem comida por se tratar de um combate a "animais humanos", mas o leitor quer porque quer entender que ele se referia unicamente ao Hamas.
 
O debate no Brasil anda tão mal que agora politizamos marca de chocolate ruim. Bis é de esquerda, Kit-Kat é de direita.  
LGBTs são de esquerda, religiosos são de direita. 
Barbárie contra civis israelenses é de esquerda, cerco criminoso contra palestinos é de direita. 
E no fim das contas, se você não correr para justificar morticínio algum, você é nazista. 
Não sei vocês, mas faz anos que estou cansada dessa competição para ver quem chama mais o outro de nazista. 
Esse ethos histérico da esquerda identitária foi replicado com tudo pela nova direita. Agora, se você come Bis, é de esquerda, portanto nazista.

A defesa do genocídio em Gaza se baseia, para a maioria dos brasileiros (e ocidentais), em duas coisas: na redução da linha temporal e na ênfase exclusiva sobre o barbarismo como Mal absoluto. Comecemos pela primeira.

No calor do momento, faz perfeito sentido o mundo se deter na abjeção do crime cometido pelo Hamas e na solidariedade aos judeus que perderam familiares e amigos (ou que têm familiares e amigos em Israel). Na medida em que se inicia uma guerra, porém, é obrigação de qualquer cidadão politicamente engajado tentar entender o que aconteceu. O inglês Carl Benjamin, youtuber e político defensor do Brexit, revelou notável poder de síntese na seguinte frase: "O apoio a Israel não é tão inequívoco [como pretendem as lideranças ocidentais] por causa do poder que ele exerce sobre a Palestina, e isso complica enormemente a equação moral."

Gaza tem uma pequena fronteira com o Egito; por isso seria natural que cultivasse proximidade política com ele. 
Outra localidade que lhe interessaria, e mais ainda, é o resto da Palestina, o território referido como "Banco Ocidental" e que faz fronteira com a Jordânia. 
Essa área é controlada pelo Fatah, o partido político do notório líder Yasser Arafat. 
Tudo muda quando o Hamas ganha uma eleição em Gaza em 2006 e nunca mais sai do poder. E mais: o Hamas é aliado da Irmandade Muçulmana, inimiga do Egito e da Arábia Saudita. 
Por isso a fronteira com o Egito foi fechada. Quanto ao Banco Ocidental, ele continua governado pelo Fatah. Resultado: Gaza fica isolada dos seus aliados árabes, inviabilizando a criação do Estado da Palestina e aumentando (em comparação ao Egito) a dependência de Israel, que concede vistos de trabalho e assim abastece o Hamas com dinheiro de trabalhadores
Quanto às relações do Hamas com a Arábia Saudita e o Egito (más), e com o Catar (boa), recomendo esta e esta coluna do colega Filipe Figueiredo.

Não sei vocês, mas faz anos que estou cansada dessa competição para ver quem chama mais o outro de nazista. Esse ethos histérico da esquerda identitária foi replicado com tudo pela nova direita

Em vez de fazer de conta que tudo começou neste mês, voltemos só quatro anos no tempo. Eis o título de uma matéria de 12 de março de 2019 do Jerusalem Post, tradicional jornal de língua inglesa cuja existência remonta aos tempos coloniais britânicos da Palestina: "Netanyahu: Dinheiro para o Hamas é parte da estratégia para manter os palestinos divididos".  
A matéria alude às notórias remessas do Catar para o Hamas, e gira em torno da permissão dada por Netanyahu para que tal dinheiro entrasse em Gaza. 
A questão é tão notória em Israel, que é objeto de discussão político-partidária. 
O Partido Azul e Branco tinha em seu programa "parar de permitir a transferência dos fundos para o Hamas, chamando-a de pagamentos por 'proteção' ao estilo mafioso";
-  já um político trabalhista não parecia crer que eles sequer tivessem tal proteção, pois acusava Netanyahu de não levar a sério os projéteis lançados de Gaza. "Nós, residentes da fronteira com Gaza, estamos pagando o preço pela falta de políticas e pela arrogância ao lidar com terror", disse.

A palavra é certeira: arrogância. Porque, como informava o jornal, Netanyahu, na reunião do seu partido (o Likud, ou Consolidação), defendia o financiamento do Hamas. Cito a matéria, que ouviu uma fonte interna: "o primeiro ministro também disse que 'quem quer seja contra um Estado palestino tem que ser a favor' de transferir os fundos para Gaza, porque estabelecer uma separação entre a Autoridade Palestina no Banco Ocidental e o Hamas em Gaza ajuda a impedir o estabelecimento de um Estado palestino."

No dia seguinte ao maior ataque do Hamas, o Times of Israel publicou o artigo de opinião de Tal Schneider intitulado "Por anos, Netanyahu apoiou o Hamas. Agora, explodiu na nossa cara". Nele lemos uma crítica à estratégia de Israel de considerar "a Autoridade Palesitna um ônus e o Hamas um bônus", além de negligenciar, cada vez mais, os ataques vindos de Gaza. 
Agora, uma pergunta para o leitor ingênuo: se a elite política de Israel não quer que exista um Estado palestino, o que será que ela quer fazer com as áreas ocupadas pelos palestinos?

Vejam bem, isso tudo é opinião publicada em Israel. Se for recuar mais no tempo e meter a mão em vespeiro, dá pra encontrarmos, no Wall Street Journal, agente aposentado de Israel botando a boca no trombone e dizendo que o Hamas é uma invenção de Israel, um erro do qual ele se arrepende. Quem voltou ao assunto recentemente foi o veículo do Green Greenwald, judeu étnico, nesta matéria.

Então ficamos assim: Israel, do alto de seu poderio econômico, militar e político, coloca a sabotagem do Estado palestino como uma prioridade superior à segurança dos seus próprios cidadãos (isso sem nem falarmos dos árabes, que também são gente), e depois, quando dá ruim, empurra ao público imagens sangrentas de bebês para exigir apoio incondicional para matar outros bebês que não serão fotografados. E quem achar ruim é nazista! Diz-se que os palestinos são vítimas do Hamas. 
Decerto os israelenses são vítimas de Israel também.

Agora vamos ao segundo ponto. Se assumirmos que mortes sanguinolentas são moralmente piores do que quaisquer outros tipos de mortes, caímos naquele velho conto, frustrado pelo século XX, de que o progresso técnico leva ao progresso moral. Ora, como se sabe, o século XX demoliu essa crença justo por ter mostrado como é possível um país muito avançado (tecnologicamente) usar a sua bela infraestrutura para criar assépticas fábricas de morte, que faziam suas vítimas saírem em pó pela chaminé. Se acreditarmos que bárbaros ensopados de sangue são a pior coisa do mundo, então os campos de Auschwitz ficam para trás.

Lembra-me a reflexão de Bernanos em A França contra os robôs durante a II Guerra: "O que me faz desesperar do futuro é justamente o fato de que o esquartejamento, o esfolamento, a dilaceração de milhares de inocentes seja uma tarefa que um gentleman possa levar a efeito sem sujar os punhos da camisa, e nem mesmo a imaginação. Se o companheiro de Pizarro estripasse uma única mulher grávida, mesmo sendo ela uma índia, é provável que ela viesse a reaparecer desagradavelmente em sonhos. Já o gentleman não viu nada, não ouviu nada, não tocou em nada — foi a máquina que fez tudo; a consciência do gentleman está em ordem, sua memória apenas se enriqueceu com algumas lembranças esportivas, com as quais ele deleitará, na hora de dormir, 'a mulher da sua vida', ou aquela com quem ele engana 'a mulher da sua vida'."

Se acreditarmos que bárbaros ensopados de sangue são a pior coisa do mundo, então os campos de Auschwitz ficam para trás

Durante a II Guerra, Bernanos não tinha como saber dos campos de extermínio nazistas; mas, pela sua experiência na I Guerra, já sabia de como era diferente matar a sangue frio e bombardear. Bombardeio mata muito mais; ainda assim, o burguês tão criticado em seus livros acha muito civilizado atirar bomba na cabeça dos outros, sem saber direito quem está matando.

E se o Holocausto foi o exemplo escolhido para marcar a catástrofe humanitária da II Guerra (sem dúvida muito mais traumático porque foi uma catástrofe europeia intestina), os acontecimentos do Japão não ficam atrás. No entanto, se a mera negação do Holocausto é crime em muitos países ocidentais, a justificação do bombardeio atômico de Hiroxima e Nagasáqui é encontradiça por todo o Ocidente.  

Vá lá que aceitássemos que o Japão Imperial não seria detido sem uma medida drástica e criminosa: o que explica uma segunda bomba? (Para não dizer que não encontrei nenhuma explicação para a segunda bomba, ouvi uma tão plausível quanto infame: experimento científico. As duas bombas eram de tecnologias diferentes.)

Não há imagens sangrentas; as fotos dos cogumelos atômicos não embrulham o estômago de ninguém e são exibidas por aí. 
Os gentlemen que soltaram Little Boy e Fat Man puderam voltar limpos para casa, cheios de histórias aeronáuticas para contar.

Volto a Bernanos: "admito que esse ditado: 'Existem coisas que não se fazem', embora aparentemente inspirado pela Moral, tenha um significado muito menos respeitável: este, por exemplo — 'Existem abominações que não me sinto capaz de fazer.' Mas não se apressem em tirar conclusões tranquilizadoras demais. Os bandos de soldados da Guerra dos Cem Anos ou, pior, os companheiros de Pizarro, eram seguramente bestas-feras. Para o soldado, a hora da pilhagem era, naqueles tempos, hora privilegiada em que 'todas as coisas são permitidas'. Quando todas as coisas são permitidas, não é necessariamente verdadeiro que elas sejam todas possíveis. Se vocês perguntassem a um companheiro de Pizarro, ou ao próprio Pizarro, se ele se sentia capaz de degolar dez criancinhas, ele talvez respondesse com uma afirmativa. Mas vinte? Cem? Na impossibilidade de enternecer o coração deles, essa carnificina lhes teria provavelmente revoltado o estômago; eles acabariam por vomitar em suas mãos vermelhas. Esse vômito mais ou menos tardio teria assinalado, para eles, o limite da crueldade que não se poderia ultrapassar, sob pena de vir a ser um monstro irresponsável, um louco. Qualquer um, atualmente, do alto dos ares, pode liquidar com o máximo conforto, em vinte minutos, milhares de criancinhas, e só sentirá náusea em caso de mau tempo e se por infelicidade for sujeito a enjoos em aviões..."

E vocês vão achar bonito, claro, porque não são nazistas. São civilizados que não apoiam a barbárie. Matar criança, pode; o que não pode é sujar as mãos.

Conteúdo editado por: Jônatas Dias Lima
 
 

Bruna Frascolla, colunista - Gazeta do Povo - VOZES

 

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

O QUE MATA A DEMOCRACIA É A “SUA TORCIDA” - Fernão Lara Mesquita

Imaginemos que os Estados Unidos, depois de anexar militarmente a Baja California, estacionassem 190 mil soldados, com os tanques, os lançadores de mísseis e o mais da parafernália do costume na fronteira do México, e declarasse, apenas porque Joe Biden sozinho decidiu que o momento é bom para tanto, que não reconhece a soberania do governo mexicano sobre os estados de Sonora e Chihuahua e, se calhar, sobre o resto do México inteiro. 

Qual seria a reação do mundo? E a dos próprios americanos?

Dá pra imaginar a chuva de pedras da imprensa nacional e estrangeira? As meninas bonitas das redes americanas e mundiais de TV deslocando-se em fúria para esses territórios para mostrar, em matérias pungentes, as crianças e os bebezinhos marcados para morrer? Entrevistando incessantemente, dos “especialistas” do costume aos atores de Hollywood, quem denunciasse a dimensão do genocídio planejado? As marchas planeta afora de furibundos queimadores de bandeiras ianques? Os milhares de matérias de arquivo mostrando as barbaridades “gratuitas” todas perpetradas pelos americanos em “guerras que não eram deles” (menos a do Hitler, claro)?

Agora imagine isso na Russia do envenenador de opositores com plutônio. Seria possível algo parecido?

Ha 400 anos, quase 100 dos quais depois do fim de todos os outros impérios coloniais da História Moderna, a Russia barbariza incessantemente os mesmos vizinhos que “desinvadiu” ontem na debacle soviética. Seja “para ter acesso a mares quentes”, seja pela desculpa que for, invade, massacra, escraviza, mata deliberadamente de fome (na Ucrânia mesmo), perpetra “limpezas étnicas”, esmaga “nacionalismos”, proíbe o ensino de línguas a filhos de pais que não têm outra, fuzila religiosos em porões, aterroriza e mata até que não reste na terra alheia que cobiça senão uma “maioria russa separatista”.

Como se a humanidade não tivesse aprendido nada desde que sistematizou o domínio da História, faz a mesma coisa com seus próprios nacionais. Esmaga a ferro e fogo qualquer sinal de resistência ao “César” (czar) da hora. Não ha barbaridade nos dicionários ou nos anais da tragédia humana que não tenham praticado, primordialmente contra a sua própria gente enquanto a cepa dominante foi o comunismo soviético, ou continuem praticando hoje, já sob a variante do “capitalismo de cumplicidade” depois que se assumiu como “estado bandido”, com todos os povos, culturas ou religiões que encostem ou não em suas fronteiras.

Vladimir Putin pode dizer que é ele que tem medo de ser invadido por essa Ucrânia que mantem cercada depois de tê-la invadido ainda ontem em pleno Terceiro Milênio pela mesma razão que Lula pode afirmar que assassino é quem reage a uma tentativa de assassinato: não tanto porque conta com o silêncio obsequioso de uma população interna que controla pelo terror, mas porque já conta como plenamente instalada fora da Russia a “Sociedade da Informação Adequada” que, em nome de seu único “eleitor”, Edson Fachin acaba de prometer solenemente instalar no Brasil em ritmo ”fortíssimo”. Porque tem como certa a “torcida externa” dos intelectuais e da parcela podre da imprensa que só são ainda livres para aplaudir declarações como essa graças ao sangue derramado por americanos para libertá-los da opressão nazista ou da opressão da própria Russia comunista e que, certo como que o sol nascerá amanhã, dirá que nada mais é que “alta sabedoria” de um “estadista” especialmente ladino qualquer forma de expressão da covardia e da brutalidade dele contra quem não pode se defender delas sozinho.

Putin pode invadir, oprimir e matar porque conta com essas “avaliações realistas” de uma elite ocidental que dirá que a Ucrânia nunca foi dos ucranianos, assim como tudo o mais que existe entre a Ucrânia e Berlim (ou além), que os mísseis russos não matam nem queimam criancinhas já que isso não aparece na televisão, e que resistir às suas agressões contra outros seres humanos que querem “buscar sua felicidade” como bem entenderem é prova conclusiva de falta de “refinamento geopolítico”, quando não “uma agressão” ao agressor…

Etienne de La Boétie é o autor da proposição tristemente imortal de que a existência dos tiranos depende essencialmente dessa vontade de tantos da nossa espécie de serem tiranizados. O nosso Nelson Rodrigues deu uma versão mais individualizada, teatral e freudiana à resiliência desse horror da multidão dos anões morais à grandeza dos raros que lhes põem sombras na alma: “Porque me odeias“, perguntava o seu personagem, “se eu nunca te ajudei, nunca fiz nada por você“?

É esse, enfim, o grande paradoxo da democracia: as elites que, na segurança de que desfrutam sem tê-la conquistado, se podem dar o luxo de exibir impunemente a sua corrupção moral – as que têm e as que não têm dinheiros a salvo em terras de ninguém; as assumidamente apátridas ou as supostamente patrióticas marcando a fronteira entre os comportamentos dolosos e os comportamentos apenas idiotas – imploram diariamente pela institucionalização do tiro na nuca e da injeção de plutônio que merecem. Mas mesmo assim – paciência! – é preciso lutar por elas. Não dá pra ter democracia só para a minoria que, na hora do “Vamo vê”, faz concretamente por merecê-la.

 Fernão Lara Mesquita - Publicado originalmente O Vespeiro