Estou
preocupada com a prontidão da direita brasileira em aceitar um eventual
genocídio em Gaza como uma resposta legítima de Israel aos covardes
ataques do Hamas.
Na caixa de comentários do meu último artigo, não
faltaram leitores dispostos a interpretar um cerco a toda uma população
como um ataque exclusivo ao Hamas.
O ministro da defesa diz que vai
deixar Gaza (inteira) sem água nem comida por se tratar de um combate a
"animais humanos", mas o leitor quer porque quer entender que ele se
referia unicamente ao Hamas.
O debate no Brasil anda
tão mal que agora politizamos marca de chocolate ruim. Bis é de
esquerda, Kit-Kat é de direita.
LGBTs são de esquerda, religiosos são de
direita.
Barbárie contra civis israelenses é de esquerda, cerco
criminoso contra palestinos é de direita.
E no fim das contas, se você
não correr para justificar morticínio algum, você é nazista.
Não sei
vocês, mas faz anos que estou cansada dessa competição para ver quem
chama mais o outro de nazista.
Esse ethos histérico da esquerda
identitária foi replicado com tudo pela nova direita. Agora, se você
come Bis, é de esquerda, portanto nazista.
A defesa
do genocídio em Gaza se baseia, para a maioria dos brasileiros (e
ocidentais), em duas coisas: na redução da linha temporal e na ênfase
exclusiva sobre o barbarismo como Mal absoluto. Comecemos pela primeira.
No
calor do momento, faz perfeito sentido o mundo se deter na abjeção do
crime cometido pelo Hamas e na solidariedade aos judeus que perderam
familiares e amigos (ou que têm familiares e amigos em Israel). Na
medida em que se inicia uma guerra, porém, é obrigação de qualquer
cidadão politicamente engajado tentar entender o que aconteceu. O inglês
Carl Benjamin, youtuber e político defensor do Brexit, revelou notável poder de síntese na seguinte frase:
"O apoio a Israel não é tão inequívoco [como pretendem as lideranças
ocidentais] por causa do poder que ele exerce sobre a Palestina, e isso
complica enormemente a equação moral."
Gaza
tem uma pequena fronteira com o Egito; por isso seria natural que
cultivasse proximidade política com ele.
Outra localidade que lhe
interessaria, e mais ainda, é o resto da Palestina, o território
referido como "Banco Ocidental" e que faz fronteira com a Jordânia.
Essa
área é controlada pelo Fatah, o partido político do notório líder
Yasser Arafat.
Tudo muda quando o Hamas ganha uma eleição em Gaza em
2006 e nunca mais sai do poder. E mais: o Hamas é aliado da Irmandade
Muçulmana, inimiga do Egito e da Arábia Saudita.
Por isso a fronteira
com o Egito foi fechada. Quanto ao Banco Ocidental, ele continua
governado pelo Fatah. Resultado: Gaza fica isolada dos seus aliados
árabes, inviabilizando a criação do Estado da Palestina e aumentando (em
comparação ao Egito) a dependência de Israel, que concede vistos de
trabalho e assim abastece o Hamas com dinheiro de trabalhadores.
Quanto
às relações do Hamas com a Arábia Saudita e o Egito (más), e com o Catar
(boa),
recomendo esta e esta coluna do colega Filipe Figueiredo. Não sei vocês, mas faz anos que estou cansada dessa competição para ver quem chama mais o outro de nazista. Esse ethos histérico da esquerda identitária foi replicado com tudo pela nova direita
Em vez de fazer de conta que tudo começou neste mês
, voltemos só quatro anos no tempo.
Eis o título de uma matéria de 12 de março de 2019 do Jerusalem Post,
tradicional jornal de língua inglesa cuja existência remonta aos tempos
coloniais britânicos da Palestina: "Netanyahu: Dinheiro para o Hamas é
parte da estratégia para manter os palestinos divididos". A matéria
alude às notórias remessas do Catar para o Hamas, e gira em torno da
permissão dada por Netanyahu para que tal dinheiro entrasse em Gaza.
A
questão é tão notória em Israel, que é objeto de discussão
político-partidária.
O Partido Azul e Branco tinha em seu programa
"parar de permitir a transferência dos fundos para o Hamas, chamando-a
de pagamentos por 'proteção' ao estilo mafioso";
- já um político
trabalhista não parecia crer que eles sequer tivessem tal proteção, pois
acusava Netanyahu de não levar a sério os projéteis lançados de Gaza.
"Nós, residentes da fronteira com Gaza, estamos pagando o preço pela
falta de políticas e pela arrogância ao lidar com terror", disse.
A
palavra é certeira: arrogância. Porque, como informava o jornal,
Netanyahu, na reunião do seu partido (o Likud, ou Consolidação),
defendia o financiamento do Hamas. Cito a matéria, que ouviu uma fonte
interna: "o primeiro ministro também disse que 'quem quer seja contra um
Estado palestino tem que ser a favor' de transferir os fundos para
Gaza, porque estabelecer uma separação entre a Autoridade Palestina no
Banco Ocidental e o Hamas em Gaza ajuda a impedir o estabelecimento de
um Estado palestino."
No dia seguinte ao maior ataque do Hamas,
o Times of Israel publicou o artigo de opinião
de Tal Schneider intitulado "Por anos, Netanyahu apoiou o Hamas. Agora,
explodiu na nossa cara". Nele lemos uma crítica à estratégia de Israel
de considera
r "a Autoridade Palesitna um ônus e o Hamas um bônus", além
de negligenciar, cada vez mais, os ataques vindos de Gaza.
Agora, uma
pergunta para o leitor ingênuo: se a elite política de Israel não quer
que exista um Estado palestino, o que será que ela quer fazer com as
áreas ocupadas pelos palestinos?
Vejam bem, isso tudo
é opinião publicada em Israel. Se for recuar mais no tempo e meter a
mão em vespeiro, dá pra encontrarmos, no Wall Street Journal,
agente aposentado de Israel botando a boca no trombone e dizendo que o
Hamas é uma invenção de Israel, um erro do qual ele se arrepende. Quem
voltou ao assunto recentemente foi o veículo do Green Greenwald, judeu
étnico, nesta matéria.
Então
ficamos assim: Israel, do alto de seu poderio econômico, militar e
político, coloca a sabotagem do Estado palestino como uma prioridade
superior à segurança dos seus próprios cidadãos (isso sem nem falarmos
dos árabes, que também são gente), e depois, quando dá ruim, empurra ao
público imagens sangrentas de bebês para exigir apoio incondicional para
matar outros bebês que não serão fotografados. E quem achar ruim é
nazista! Diz-se que os palestinos são vítimas do Hamas.
Decerto os
israelenses são vítimas de Israel também.
Agora vamos
ao segundo ponto. Se assumirmos que mortes sanguinolentas são
moralmente piores do que quaisquer outros tipos de mortes, caímos
naquele velho conto, frustrado pelo século XX, de que o progresso
técnico leva ao progresso moral. Ora, como se sabe, o século XX demoliu
essa crença justo por ter mostrado como é possível um país muito
avançado (tecnologicamente) usar a sua bela infraestrutura para criar
assépticas fábricas de morte, que faziam suas vítimas saírem em pó pela
chaminé. Se acreditarmos que bárbaros ensopados de sangue são a pior
coisa do mundo, então os campos de Auschwitz ficam para trás.
Lembra-me a reflexão de Bernanos em A França contra os robôs
durante a II Guerra: "O que me faz desesperar do futuro é justamente o
fato de que o esquartejamento, o esfolamento, a dilaceração de milhares
de inocentes seja uma tarefa que um gentleman possa levar a
efeito sem sujar os punhos da camisa, e nem mesmo a imaginação. Se o
companheiro de Pizarro estripasse uma única mulher grávida, mesmo sendo
ela uma índia, é provável que ela viesse a reaparecer desagradavelmente
em sonhos. Já o gentleman não viu nada, não ouviu nada, não tocou em nada — foi a máquina que fez tudo; a consciência do gentleman
está em ordem, sua memória apenas se enriqueceu com algumas lembranças
esportivas, com as quais ele deleitará, na hora de dormir, 'a mulher da
sua vida', ou aquela com quem ele engana 'a mulher da sua vida'."
Se acreditarmos que bárbaros ensopados de sangue são a pior coisa do mundo, então os campos de Auschwitz ficam para trás
Durante
a II Guerra, Bernanos não tinha como saber dos campos de extermínio
nazistas; mas, pela sua experiência na I Guerra, já sabia de como era
diferente matar a sangue frio e bombardear. Bombardeio mata muito mais;
ainda assim, o burguês tão criticado em seus livros acha muito
civilizado atirar bomba na cabeça dos outros, sem saber direito quem
está matando.
E se o Holocausto foi o exemplo
escolhido para marcar a catástrofe humanitária da II Guerra (sem dúvida
muito mais traumático porque foi uma catástrofe europeia intestina), os
acontecimentos do Japão não ficam atrás. No entanto, se a mera negação
do Holocausto é crime em muitos países ocidentais, a justificação
do bombardeio atômico de Hiroxima e Nagasáqui é encontradiça por todo o
Ocidente.
Vá lá que aceitássemos que o Japão Imperial não seria detido
sem uma medida drástica e criminosa: o que explica uma segunda
bomba? (Para não dizer que não encontrei nenhuma explicação para a
segunda bomba, ouvi uma tão plausível quanto infame: experimento
científico. As duas bombas eram de tecnologias diferentes.)
Não há imagens sangrentas; as fotos dos cogumelos atômicos não embrulham o estômago de ninguém e são exibidas por aí.
Os gentlemen que soltaram Little Boy e Fat Man puderam voltar limpos para casa, cheios de histórias aeronáuticas para contar.
Volto
a Bernanos: "admito que esse ditado: 'Existem coisas que não se fazem',
embora aparentemente inspirado pela Moral, tenha um significado muito
menos respeitável: este, por exemplo — 'Existem abominações que não me
sinto capaz de fazer.' Mas não se apressem em tirar conclusões
tranquilizadoras demais. Os bandos de soldados da Guerra dos Cem Anos
ou, pior, os companheiros de Pizarro, eram seguramente bestas-feras.
Para o soldado, a hora da pilhagem era, naqueles tempos, hora
privilegiada em que 'todas as coisas são permitidas'. Quando todas as
coisas são permitidas, não é necessariamente verdadeiro que elas sejam
todas possíveis. Se vocês perguntassem a um companheiro de Pizarro, ou
ao próprio Pizarro, se ele se sentia capaz de degolar dez criancinhas,
ele talvez respondesse com uma afirmativa. Mas vinte? Cem? Na
impossibilidade de enternecer o coração deles, essa carnificina lhes
teria provavelmente revoltado o estômago; eles acabariam por vomitar em
suas mãos vermelhas. Esse vômito mais ou menos tardio teria assinalado,
para eles, o limite da crueldade que não se poderia ultrapassar, sob
pena de vir a ser um monstro irresponsável, um louco. Qualquer um,
atualmente, do alto dos ares, pode liquidar com o máximo conforto, em
vinte minutos, milhares de criancinhas, e só sentirá náusea em caso de
mau tempo e se por infelicidade for sujeito a enjoos em aviões..."
E
vocês vão achar bonito, claro, porque não são nazistas. São civilizados
que não apoiam a barbárie. Matar criança, pode; o que não pode é sujar
as mãos.
Conteúdo editado por: Jônatas Dias Lima
Bruna Frascolla, colunista - Gazeta do Povo - VOZES