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sexta-feira, 6 de maio de 2016

Desastrosa complacência

O rápido agravamento das contas públicas no primeiro mandato de Dilma foi solenemente ignorado pelo BC

Armínio Fraga tem reiterado que é preciso entender as raízes da colossal crise fiscal com que agora se debate o país. Como tamanha devastação pôde ser perpetrada sob a vigência da Lei de Responsabilidade Fiscal? O que houve? Mera desobediência à lei ou ardilosa exploração de suas falhas e brechas?

Por mais importantes que sejam, tais indagações não têm respostas simples. Levará algum tempo até que se possa ter perspectiva nítida e abrangente do que de fato ocorreu. Mas isso não impede que, desde já, fatos que ajudem a entender o que parece ter ocorrido comecem a ser analisados.

Como bem notou Billy Wilder, visão retrospectiva é sempre perfeita. Constatado o arrombamento, fica claro que a fechadura era frágil e que faltaram alarmes mais estridentes. É preciso ter em mente, contudo, que o arrombamento não ocorreu de repente. Resultou de um longo processo, que se arrastou por toda uma década, de 2005 a 2014, em que o governo testou, ano após ano, os limites do possível para o abandono da responsabilidade fiscal.

Na escalada de abusos que, aos poucos, deu lugar à desastrosa situação fiscal que hoje se vê, o governo apostou com grande sucesso na complacência de formadores de opinião, do empresariado, da oposição, de segmentos da administração pública que poderiam ter se mostrado menos coniventes e de órgãos de controle que poderiam ter sido mais atuantes.

Quando a adulteração do registro das contas públicas tornou-se sistemática, não faltaram economistas influentes que se prontificaram a descartar as manobras contábeis como questões de somenos importância. Meros “pecadilhos”, chegou a pontificar um deles. Ledo engano. Rompido o compromisso com um registro sério e confiável das contas públicas, em pouco tempo os “pecadilhos” dariam lugar a um desregramento fiscal de proporções desastrosas.

Em 2010, eufórico com a superação dos piores efeitos da crise mundial e com a perspectiva de crescimento do PIB de 7,5%, o governo, afinal, sentiu-se à vontade para desfraldar de vez a bandeira da Nova Matriz Macroeconômica e passar a defender de forma mais ostensiva o abandono da responsabilidade fiscal, congratulando-se por sua “capacidade de escapar das limitações autoimpostas”. Já não havia mais dúvida sobre o que se poderia esperar do governo Dilma. Mas os órgãos de controle custariam a reagir.

No Banco Central, desde sempre responsável pelas estatísticas de necessidade de financiamento e dívidas do setor público, não se viu sinal de resistência à “contabilidade criativa” que lhe chegava pronta do Tesouro e do BNDES. Em 2011, o Banco Central chegou a classificar a política fiscal de 2010 como “neutra”, fechando completamente os olhos para o vigoroso impulso fiscal que advinha das gigantescas transferências de recursos do Tesouro ao BNDES. 

À medida que os dados de resultado primário publicadas pelo Banco Central se tornaram imprestáveis, o setor privado se viu obrigado a trabalhar por anos a fio com suas próprias estimativas, sem que essa situação vergonhosa gerasse clima de indignação ou reações que pudessem trazer incômodo político relevante ao governo. O rápido agravamento das contas públicas no primeiro mandato da presidente Dilma foi solenemente ignorado pelo Banco Central, que se permitiu continuar adotando hipóteses róseas sobre a condução da política fiscal.

Em 2014, obcecada com sua reeleição, Dilma perdeu de vez a noção de prudência e partiu para o vale-tudo na condução da política fiscal e no registro das contas públicas. Seguiu à risca o “fazer o diabo” que ela mesma anunciara. E, ao cruzar de forma tão ostensiva os limites da legalidade, a presidente, afinal, deu margem a reações que agora lhe custarão o mandato. 

Mas a verdade é que o país levou muitos anos para deflagrar medidas de controle que coibissem o abandono da responsabilidade fiscal. Por que demorou tanto, a ponto de ter exigido, afinal, medida tão drástica, quando a devastação fiscal já estava tão avançada, é questão fadada a dar lugar a longo debate. 
  
Fonte: O Globo - Rogério Furquim Werneck é economista e professor da PUC-Rio

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