Aposentadoria por salário integral é a pena máxima para a punição de juízes que cometam crimes no exercício do cargo
Uso do cargo para beneficiar loja
maçônica, vendas de sentenças, relações pessoais com traficantes e
assédio sexual a servidoras de tribunais. É grande a lista de crimes
cometidos por juízes e desembargadores em todo o país que levou o CNJ
(Conselho Nacional de Justiça) a determinar a aposentadoria compulsória
de 48 magistrados desde 2008. A punição por aposentadoria compulsória
custa aos cofres públicos anualmente R$ 16,4 milhões em pensões
vitalícias e valores brutos, conforme levantamento inédito feito pelo
UOL.
O
montante gasto com os 48 magistrados condenados pelo CNJ daria para
pagar com folga durante três anos os salários dos 11 ministros do STF
(Supremo Tribunal Federal). Eles custam, juntos, cerca de R$ 5 milhões
por ano entre vencimentos e impostos. Em valores líquidos, após o desconto de
impostos, a folha salarial dos ministros cai para R$ 3,2 milhões por
ano. A remuneração dos magistrados punidos pelo CNJ fica em R$ 11,85
milhões anuais.
O valor médio recebido anualmente por
juiz ou desembargador condenado com a aposentadoria compulsória varia de
R$ 237 mil a R$ 329 mil, conforme a diferença entre vencimentos líquido
e bruto. Os valores mensais foram multiplicados por 13 meses para
chegar ao total anual, considerando o 13º salário. Os dados foram coletados pelo UOL nos
sites de transparência dos tribunais brasileiros e, em alguns casos, em
valores informados pelas assessorias de imprensa dos órgãos judiciários.
Duas resoluções do CNJ determinam total
transparência na folha de pagamentos dos tribunais. Mas nem todos
cumprem a determinação. Os Tribunais de Justiça da Paraíba e do Rio de
Janeiro não disponibilizam os dados. A reportagem procurou as assessorias
para acessar os números, mas não obteve resposta. Uma servidora que
pediu para não ser identificada disse que foi “repreendida” por
solicitar os dados internamente.
Para o ex-corregedor do CNJ Gilson Dipp,
a dificuldade em ter acesso a informações que deveriam ser públicas
ocorre porque “a Justiça não tem muita transparência”. O período de Dipp à
frente da corregedoria nacional, entre os meses de setembro de 2008 e
2010, foi o de maior punição de magistrados. Ele participou de 18
afastamentos compulsórios, incluindo o do ex-ministro do STJ (Superior
Tribunal de Justiça) Paulo Medina por venda de sentenças para beneficiar
empresários de bingos ilegais.
Dipp, que foi também ministro do STJ,
considera o montante pago a magistrados afastados por atos ilícitos um
“disparate” que contribui para reforçar na sociedade o sentimento de que
a aposentadoria compulsória é um “prêmio” a corruptos. Já o presidente da AMB (Associação dos
Magistrados Brasileiros), João Ricardo Costa, defende a manutenção das
aposentadorias. “Essa regra traz muito mais ganhos para a sociedade do
que fatos isolados que nós temos no país”, diz.
A aposentadoria compulsória é a pena
máxima prevista na Loman (Lei Orgânica da Magistratura Nacional), criada
em 1979 e incorporada pela Constituição de 1988. É uma medida
administrativa, sem efeito penal imediato, e o pagamento só pode ser
suspenso caso o magistrado seja condenado pela Justiça comum. Embora desde 2012 o STF tenha decidido
que magistrados aposentados não têm direito a foro privilegiado, a
condenação no CNJ não gera uma ação penal automaticamente. É preciso que
o Ministério Público, um tribunal ou mesmo um cidadão acione a Justiça
para investigar o magistrado fora do âmbito administrativo. No geral, os
casos envolvendo juízes e desembargadores caem no esquecimento após
sair do CNJ.
Costa avalia que a punição
administrativa é importante para evitar que os magistrados fiquem à
mercê de pressões políticas e econômicas locais, uma vez que as
investigações começam nos tribunais espalhados pelo país antes de chegar
ao CNJ. O dirigente da AMB cita um caso no Acre,
onde um juiz endureceu nas decisões contra nepotismo e sofreu
retaliações. “A punição administrativa é feita pela administração do
tribunal, que pode ser pressionada pelo poder político local, pelo
governo do Estado etc. Por isso tem toda uma justificativa para que o
juiz não seja demitido pelo processo administrativo”, diz.
Dipp sugere uma revisão na legislação
para suspender os pagamentos em casos mais graves, como a venda de
sentença. “O desejável é que não houvesse nenhum benefício [como a
aposentadoria compulsória após comprovação de ilicitudes]. Isso é
terrível, mas está previsto na lei. O Judiciário tem vantagens
[financeiras] decorrentes de leis ou de decisões judiciais que não
deveriam existir”, afirma. O dirigente da AMB defende uma reforma
no sistema recursal, que permite um número elevado ações para protelar
decisões definitivas. “O problema todo é que temos um sistema processual
em que os processos não terminam nunca, principalmente em situações que
envolvem agentes políticos, grandes empresários e também a
magistratura”, diz.
‘Bandidos de toga’
A venda de sentença é a principal causa
de afastamento de magistrados pelo CNJ, que inclusive já condenou três
vezes o mesmo desembargador pelo crime.
Autora da expressão “bandidos de
toga” para se referir aos magistrados corruptos, a ex-corregedora do CNJ
e ex-ministra do STJ Eliana Calmon diz que pouca coisa mudou desde
quando fez a afirmação, quando comandava a apuração de infrações
cometidas por magistrados entre 2010 e 2012. “A sociedade não perdoa
juiz corrupto. É repugnante até para quem corrompe”, afirma.
Para Eliana Calmon, é preciso mudar a
Lei Orgânica da Magistratura Nacional para haver mais rigor na punição
de ilegalidades praticadas por juízes e desembargadores. “É necessário
separar as maçãs podres para fortalecer o Judiciário com ainda mais
credibilidade popular, como vem acontecendo depois da Lava Jato. Isso
não exclui os juízes corruptos que se escondem, se protegem por detrás
das garantias da magistratura. Este foi o sentido da frase que cunhei ao
me referir aos bandidos de toga”, recomenda.
A revisão da Loman, contudo, ganhou os
holofotes recentemente depois que o presidente do Senado, Renan
Calheiros (PMDB-AL), pediu ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia
(DEM-RJ), para “agilizar” a votação da proposta de emenda constitucional
(PEC 53/2011). A emenda foi aprovada no Senado em 2013,
prevendo a cassação dos vencimentos de magistrados condenados pelo CNJ
ao criar a possibilidade de “demissão” no âmbito da magistratura.
O texto dormitava nos escaninhos da
Câmara, mas ressurgiu com a eclosão da Operação Lava Jato. Renan
defendeu a PEC como “uma medida fundamental de combate à corrupção e à
impunidade” dos magistrados e para acabar com o “prêmio” representado
pela “aposentadoria por juiz e membro do Ministério Público” que
cometeram crimes. Dipp avalia que a iniciativa do
Congresso fere a Constituição, uma vez que esta define o STF como órgão
que deva sugerir um projeto de lei regulamentando uma nova Loman. Na madrugada do dia 30, deputados
federais aprovaram o texto-base do pacote de medidas anticorrupção
proposto pelo Ministério Público. Com os novos tópicos apresentados e a
derrubada de outros tantos, o projeto ficou desfigurado e foi criticado
por várias instâncias do Judiciário, como a Procuradoria-Geral da
República e a presidente do STF. Ele prevê punição a magistrados por
abuso de autoridade.
O Poder Judiciário não está nem além nem
aquém de qualquer outro sacrifício que o povo brasileiro e as
instituições venham a passar. Mas o ex-corregedor do CNJ critica a
demora do STF em propor a lei. Nas contas de Dipp, o Supremo discute o
tema internamente há mais de 15 anos. “Acho que o Judiciário já deveria
ter ditado a adequação da nova Loman, consentânea com os tempos atuais. A
Loman atual é antiquada e de certa maneira é corporativista”, avalia.
Eliana Calmon também defende mudanças,
ressaltando que há casos em que a aposentadoria compulsória é uma boa
medida para servidores públicos em geral, inclusive no Judiciário. “É
imprescindível que se façam correções na Loman”, diz. A ex-ministra do STJ sugere uma nova
legislação que crie multas para infrações menores, exija o ressarcimento
de dinheiro público desviado e suspenda o direito de magistrados
voltarem por novo concurso. “Conheço juiz aposentado compulsoriamente
por corrupção e que prestou novo concurso. Era juiz estadual e, após a
punição administrativa, fez concurso para juiz federal. Se houvesse
impedimento legal, ele não mais poderia fazer concurso, pelo menos para a
magistratura”, conta.
Penduricalhos
A folha de pagamento com os compulsórios
pode ser ainda maior se considerar gratificações e indenizações pagas
pelos tribunais regionais. São os chamados “penduricalhos”. O Tribunal de Justiça do Amazonas pagou
neste ano, por exemplo, de R$ 10 mil a R$ 18 mil a cada um de quatro
juízes aposentados por decisão do CNJ. Os valores aparecem na folha de
pagamento apenas como “vantagens pessoais”.
A situação permite a um ex-desembargador
do TJ-AM ampliar substancialmente os seus vencimentos. O salário fixo
dele é de R$ 30.471,11 por mês, mas, com o recebimento nos últimos meses
de R$ 10 mil como “gratificação”, o ganho mensal sobe para R$
38.261,05. Em maio deste ano, ele recebeu R$ 15,8 mil em gratificação,
que, somados à parcela do 13º, fizeram sua renda líquida atingir R$
46.404,63.
Em resposta, o TJ-AM disse “que o valor
de R$ 15.788,49 corresponde à Parcela Autônoma de Equivalência, no
montante de R$ 10 mil, paga em cumprimento à decisão judicial, assim
como acontece em todos os tribunais do país, devida aos magistrados
ativos e inativos; e o valor de R$ 5.788,49, concedido por decisão
administrativa que corresponde a uma diferença de subsídio do ano de
2005 autorizada pela Lei 3.506/2010, de 17/05/2010, cujo término do
pagamento se deu em junho de 2016″.
São esses penduricalhos nos salários que
fazem o Judiciário pagar, em muitos casos, mais que o teto permitido
pela Constituição, que é o vencimento bruto de ministro do STF: R$
33.763. Dipp afirma que “tem certos benefícios que não podem ser recebidos pelos aposentados, mas vários tribunais estão pagando”. O Tribunal de Justiça do Estado de Santa
Catarina (TJ-SC) reforçou, em agosto, por exemplo, o contracheque de um
ex-desembargador com bonificação de R$ 11.516,34. Foi o repasse da
Parcela Autônoma de Equivalência (PAE), concedido pelo órgão catarinense
a seus magistrados para corrigir perda salarial com a URV (Unidade Real
de Valor), adotada em 1994 para fazer a transição do cruzeiro para o
real.
Ele foi afastado pelo CNJ em junho de
2014. Ele perdeu o cargo por não denunciar a exploração sexual de uma
adolescente. A Polícia Federal identificou que ele sabia de relações de
um amigo com uma garota de programa de 16 anos. O ex-magistrado catarinense recebe mais
de R$ 22,5 mil líquidos como aposentadoria, mas custa mais de R$ 30,3
mil ao TJ-SC, entre vencimento e impostos. Ele recebe mensalmente outros
R$ 300 como auxílio-saúde.
Em nota, o TJ-SC confirmou o benefício
da “restituição de contribuição do Instituto de Previdência de Santa
Catarina, cobrado de forma equivocada em relação aos magistrados, e
naquele instante [agosto] recomposto ao patrimônio dos anteriormente
prejudicados, em conformidade com a legislação vigente”. Para o ex-corregedor do CNJ, a crise
econômica impõe mais rigor ao Judiciário com esse tipo de “penduricalho”
e deveria partir do STF a revisão dos benefícios. “O ajuste fiscal
[conduzido pelo governo federal], não importa quem seja o causador, deve
corresponder a todo o serviço público.”
O presidente da AMB defende um
enxugamento nos benefícios dos magistrados. Ele avalia que o ideal é uma
combinação de salário mais o adicional por tempo de serviço, que
englobaria o auxílio moradia pago hoje a magistrados da ativa. “O que
queremos é uma política mais estável para a magistratura. O Congresso
entende isso, mas não se direciona para criar essa estrutura legal”, diz
João Ricardo Costa.
Fonte: UOL - Nivaldo Souza
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