Há um duelo institucional em curso no Brasil, bem espelhado no editorial
do jornal O Estado de São Paulo na edição de hoje.
O Poder Judiciário
tem legitimidade para revisar e inovar sobre as decisões legislativas?
Essa questão remete ao centro da legitimidade da representação política,
ponto fascinante para os que se debruçam sobre o tema. O voto é, ou
não, superior ao concurso público? O deputado é a “cara” do povo e de
sua vontade ou o é o magistrado togado, que se submeteu com méritos ao
concurso público? De quem devem emanar as leis?
A
questão é crucial porque estamos aqui falando da legitimidade do
exercício do poder de legislar e de uma natural hierarquia nesse mister.
O Poder Judiciário é órgão de carreira do Estado, portanto não tem
poder delegado para representar o povo. Sua missão – seu poder – é
interpretar e aplicar os textos legais emanados do Poder Legislativo.
Quando o Judiciário inova e vai além dessa missão torna-se usurpador e
um agente perigoso agindo contra a ordem natural das coisas.
A
modernidade rompeu com os tempos antigos ao dar ao povo o poder
soberano sobre as leis, que antes, entendia-se, deviam estar conectadas
com a transcendência, Deus ele mesmo. A modernidade usurpou essa tarefa
que estava resumida nos textos sagrados, modificando inclusive o que se
entendia por direito natural, agora indissoluvelmente associado à razão
humana, não mais à vontade divina. Os Dez Mandamentos ainda valem porque
assim o Legislador entendeu, não por seu valor intrínseco por fluir
desde o divino. E nem todos. Avocar o povo como a vontade última da ação
legisladora, mediante a representação, é o dogma mais fundado da
ciência política moderna e violar esse princípio é o começo da sedição
legítima, da contrarrevolução contra o déspota usurpador.
Quem
é o déspota? E todo ente que atenta contra a sacralidade da vontade
popular consagrada aos representantes do povo pelo voto. Desfigurar a
função legislativa é a própria usurpação. Então podemos dizer que o STF e
outros membros do Poder Judiciário têm usurpado a ação dos
representantes do povo, dando-se a si mesmos poder delegado que não
possuem, nunca possuíram. O Poder Judiciário é legítimo quando seus
membros, obedecendo à hierarquia natural do processo político,
submetem-se à majestade dos representantes do povo, e também aos ritos
de acesso aos cargos, mediante concurso público e demais requisitos para
tomar posse, inclusive o de ser brasileiro e de estar em pleno gozo dos
direitos políticos.
Esses
acessos cesáreos que temos visto de membros do Poder Judiciário
conspurcam a ordem natural das coisas e criam um potencial de violência
institucional que remetem aos tempos revolucionários. Quem tem o poder
de fato – o povo – não irá tolerar a usurpação por muito tempo. É
portanto muito perigoso mexer com as coisas essenciais da representação
política.
Inútil
argumentar que os deputados mais das vezes, individualmente e na
expressão das maiorias mediante votos, são despreparados e portadores de
folha corrida incompatível com sua maiúscula magistratura. O Parlamento
é a imagem do próprio povo e não se pode requerer dele virtudes mais
excelsas do que aquelas encontradas no próprio povo. Se nossa gente é
corrupta e carreirista e enxerga no Estado campo de caça para rendas
espúrias, os representantes também assim serão. Aqui que cabe a função
específica do Poder Judiciário, moderando o apetite para compatibilizar a
representação com o decoro e as boas regras de convivência e do trato
com o dinheiro público, em respeito ao Código Penal. O mensalão e o
petrolão, com todas as suas deficiências, têm demonstrado a beleza e a
legitimidade da atuação do Poder Judiciário.
O
fato é que não se vê nos membros do STF que conduzem sua relação com o
Congresso Nacional com vara de marmelo virtudes superiores àquelas em
média encontradas nos deputados eleitos. Parlamento e magistratura
judiciária espelham igualmente as virtudes e as mazelas de nossa gente.
Não poderia ser diferente.
Fonte: www.nivaldocordeiro.net
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