Talvez já seja a hora de se falar que as aves de mau agouro, que
ainda insistem em pousar em nossa sorte, estejam começando a sentir que
lhes tenha chegado o momento de baterem asas em busca de lugares mais
propícios à sua presença malévola. As ruas, embora atentas ao que se
passa ao redor, se mantém serenas, malgrado as vociferações daqueles
treinados em açular, como nas rinhas de galos de briga, instintos
guerreiros e que, mesmo em surdina, se mantêm renitentes incitando
cizânia pelos meios de comunicação sob sua influência.
Nessa empresa, ocultam maliciosamente seus propósitos da opinião
pública, assim exposta a um enigma que não consegue decifrar – será que
se trata de tentativas de manipulação da próxima sucessão presidencial?
De outra parte, os quartéis, em outros momentos sensíveis a turbulências
do tipo das que agora nos acometem, igualmente atentos, se fizeram
blindar das paixões irracionais da política com o manto do texto
constitucional. De fato, hoje quase um lugar comum, as instituições que desenhamos na
Carta de 88 têm demonstrado uma resiliência capaz de manter em
equilíbrio uma sociedade tão invertebrada, heterogênea e desigual como a
nossa. Como o general grego Leônidas, em célebre batalha dos campos de
guerra da antiguidade, ao ser advertido de que as flechas do exército
persa, com quem combatia nos desfiladeiros das Termópolis, eram tantas
que podiam cobrir o sol, teria retrucado que “tanto melhor, combateremos
à sombra”, podemos também não temê-las sob o abrigo de nossas
instituições.
Mas de onde procedem as flechas que desejam ameaçar uma democracia
debilitada por um segundo impeachment presidencial em pouco mais de duas
décadas? Bizarramente elas nos vêm de uma instituição jurisdicional do
Estado incumbida da defesa da ordem jurídica e do regime democrático,
que se auto atribuiu o papel salvífico de passar o país a limpo
livrando-o do que seria a casta cleptocrata dos políticos. Sob o tema
fiat justitia et pereat mundus nossos procuradores têm fechado os olhos
às teorias consequencialistas de um Ronald Dworkin, de obra justamente
reverenciada, que na modelagem do seu herói Hércules jamais
desconsiderava todas as circunstâncias presentes num caso difícil a fim
de atingir a melhor solução possível.
O Brasil, sabem todos, é um caso difícil, tanto pela sua história de
formação, que combinou as instituições políticas do liberalismo com a
escravidão, tanto por sua história recente, quando no regime militar em
que foi submetido, em condições de imobilidade política, a um
vertiginoso processo de modernização “pelo alto”. O sociólogo Carlos
Hasenbalg, estudando os processos demográficos dessa modernização em
ensaio marcante, chegou a compará-lo à envergadura do caso chinês.
Boa parte dos políticos ainda atuantes nasceu sob as condições
inóspitas daquele regime – os militares, a seu modo, eram
“consequencialistas” – a fim de realizar seu projeto de modernização
“pelo alto” se aliaram notoriamente a vetustas oligarquias. Analistas
sérios não podem recusar tanto os êxitos modernizadores do regime do
Estado Novo de 1937 quanto os do recente regime militar, sem deixar de
lamentar o lastro autoritário que nos legaram após sua passagem.
A Carta de 88 varreu grande parte desse entulho autoritário, mas a
cultura política que vicejou ao longo de décadas de modernização “por
cima” – incluído o governo JK e os anos do regime militar – não se deixa
remover por letras de lei, e sim pela livre atividade da sociedade
civil que, por ensaio e erro, venha a encontrar formas de
auto-organização. A própria lei da ação civil pública, de 1985,
inspirada nas class actions americanas, visava animar a sociedade civil
facultando a ela o acesso ao judiciário a fim de apresentar suas
demandas. Os movimentos sociais, que grassaram como cogumelos nos anos
de 1980, iniciativa da esquerda em reação ao autoritarismo da época, não
só se tornaram refratários ao Estado, como desenvolveram crenças e
sentimentos em favor da autonomia da sociedade civil e de suas
instituições diante dele. Era também por baixo que o país se “fazia
passar a limpo”.
Essa movimentação benfazeja, contudo, foi interrompida pela mudança
de rumos adotada por alguns atores estratégicos: a teologia da
libertação que, desde os anos 1990, tinha sido uma de suas fontes mais
relevantes, foi obstruída pela intervenção da hierarquia católica; as
ações civis públicas foram apropriadas pelo Ministério Público,
introduzindo um sistema tutelar sobre a vida civil, adulterando, como
comentou o jurista Kazuo Watanabe, um dos seus autores, sua intenção
original; e o PT, talvez a sua mais forte sustentação na época, em
guinada surpreendente, “absolve” a era Vargas e se põe em continuidade
com suas tradições de estadofilia.
O resto da história nos é bem conhecido. Passado o hiato dos governos
FHC, em que se procurou deixar para trás a herança dos anos 1930, a era
Lula que lhe sucedeu, a princípio timidamente, logo investe sem rebuços
na sua restauração, como ficou claro em sua política de financiamento
das centrais sindicais pela contribuição obrigatória dos seus filiados.
E, sobretudo, pela sua orientação em favor de uma forte associação do
Estado com setores empresariais, ditos “campeões nacionais”, nos moldes
antes praticados nos governos de Vargas.
A chamada operação Lava Jato vem deslindando os resultados maléficos
dessa política para a nossa democracia, e não se pode negar a ela, em
que pese seus excessos, de que seja um esforço bem sucedido de se passar
o país a limpo. Mas esse esforço somente poderá deixar frutos
permanentes se envolver a ação das forças vivas da sociedade, que,
aliás, já contam com hora marcada para intervir na reforma política em
curso e, principalmente, na vizinha sucessão presidencial.
Por: Luiz Werneck Vianna é sociólogo, PUC-Rio
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