Fraude, traição, assassinato e uma viúva foragida. A história trágica de um bilhete da Mega-sena
Aldinéia Senna, de 68 anos, trabalhou durante toda a vida como merendeira do Colégio Estadual Antônio Francisco Leal, em Tanguá, município com menor índice de desenvolvimento humano da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Durante os 30 anos em que serviu lanches para os alunos, ganhou salário de pouco mais de R$ 1.000 e tinha o direito de morar numa pequena casa dentro do terreno do colégio. Apesar de ter passado quase metade da vida numa escola, não sabe ler nem escrever.
Capa Revista Época Ed 1038-Home560 (Foto: Época)
A merendeira conversou com ÉPOCA na casa de uma de suas sobrinhas em Manilha, também na Região Metropolitana do Rio. O quarteirão onde fica o imóvel é repleto de pichações com um aviso a possíveis delatores: “Vai morrer X9. Assinado: CV”. O imóvel pequeno — sala, cozinha, quarto e banheiro — e recém-reformado fica escondido nos fundos de outro terreno maior. Para chegar lá, é preciso passar por um portão de ferro e um corredor repleto de materiais de construção. Inicialmente, Aldinéia é tímida. Prefere começar a conversa só ouvindo. Mas, quando desanda a falar, é difícil interromper: parece discursar para uma plateia. Ela fala alto. Quase grita quando fica com raiva.
Separou-se cedo do marido e criou, sozinha, seus cinco filhos. Mais velha de 14 irmãos, a merendeira também era uma espécie de porto seguro para o restante da família. Por cinco anos abrigou um irmão que teve de amputar as duas pernas devido a diabetes. Atualmente, compartilha sua casa, em Saquarema, na Região dos Lagos, para onde se mudou após a aposentadoria, com outro irmão, que também perdeu um pé para a doença. Nos últimos meses, Aldinéia comemorou a regularização do pagamento de sua aposentadoria de pouco mais de R$ 900 pelo governo do Rio — que atrasou vários meses no ano passado devido à crise financeira pela qual passa o estado.
Segundo uma decisão da 17ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio, do último dia 7 de fevereiro, Aldinéia tem direito a 10% de uma herança avaliada em cerca de R$ 120 milhões. O irmão doente que a merendeira abrigou no momento mais crítico da vida era Renê Senna, o ex-lavrador biamputado que ganhou, sozinho, R$ 52 milhões na Mega-Sena e acabou assassinado com quatro tiros na cabeça num bar, em 7 de janeiro de 2007, um ano e meio depois de ficar rico.
Onze anos depois do homicídio, a sentença determinou a anulação do último testamento feito em vida pelo ex-lavrador, que dividia a herança entre sua filha única, Renata, hoje com 36 anos, e sua então companheira, a cabeleireira Adriana Almeida, condenada em 2016 a 20 anos de prisão por ser mandante do crime. Para a Justiça, o testamento, elaborado três meses antes do assassinato, foi feito de forma fraudulenta: “Obviamente, se o testador conhecesse o propósito homicida ocultado por Adriana, não disporia de seu patrimônio como efetivamente dispôs”, escreveu o desembargador Elton Leme, relator do caso. O voto do magistrado foi seguido por todos os seus pares na ocasião.
Com a decisão, foi revalidado o testamento anterior, de setembro de 2005, que dividia a fortuna entre a filha e os irmãos de Renê — cada um tem direito a uma fatia estipulada pelo milionário. Aldinéia, no entanto, segue sem ver a cor do dinheiro. “Enquanto estou viva, vou ter esperança”, disse a idosa. Apesar da sentença, a guerra pela herança de Renê está longe de um desfecho e envolve uma intricada rede de processos e recursos judiciais, o abandono de diversos imóveis e até uma investigação que apura o desvio de parte da bolada.
Durante o breve período em que foi milionário, Renê Senna obteve um patrimônio inimaginável para um ex-lavrador. Documentos que fazem parte do processo de anulação do testamento — que tramita em segredo de Justiça e foi obtido por ÉPOCA — listam seus bens à época do crime.
>>Trecho da reportagem de capa de ÉPOCA desta semana
por Rafael Soares -
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