Falta de planejamento e de investimentos em ferrovias e hidrovias deixou Brasil refém
A greve
dos caminhoneiros expôs o nó da infraestrutura de transporte brasileira. Em
poucos dias, o país enfrentou sinais de caos com desabastecimento, disparada de
preços, falta de transporte público, e o governo tornou-se refém da categoria.
Reflexo da elevada participação das rodovias na matriz de transporte e de um
conjunto de erros — históricos e recentes — que impedem outros modais, como
ferrovias e hidrovias, de avançarem. Apenas 32% das mercadorias no país
circulam por trem ou embarcação. Falta de planejamento de longo prazo, baixo
investimento público no setor, bem como modelos de concessão que despertam
pouco interesse junto à iniciativa privada são algumas das razões que explicam
por que 66% das mercadorias são transportadas por caminhões no Brasil. Em
países de dimensão territorial semelhante, como China e Estados Unidos, esse
percentual é de 32% e 43%, respectivamente, segundo dados do instituto Ilos.
A
histórica concentração rodoviária não assegurou ganhos expressivos de
produtividade ou qualidade. São apenas 211 mil quilômetros de vias
pavimentadas, um terço da extensão da rede na Alemanha, que tem território
muito menor que o brasileiro. A comparação com países emergentes não deixa o
Brasil melhor na foto. A China é cortada por mais de 4 milhões de quilômetros
de rodovias. Já na Índia, que tem menos da metade do tamanho do Brasil, as
estradas asfaltadas se espalham por mais de 1,5 milhão de quilômetros. A
situação se repete nos outros modais: a malha ferroviária brasileira se estende
por 29 mil quilômetros, enquanto a chinesa alcança 121 mil quilômetros e a
indiana, 68 mil quilômetros. Nos EUA, a diferença é maior: são 225 mil
quilômetros de ferrovias. — O
problema da infraestrutura de transportes no Brasil é que ela é desequilibrada,
os investimentos são de má qualidade e não há integração entre os modais. Temos
que investir mais e melhor — afirma Claudio Frischtak, da consultoria Inter.B.
Uma das
razões apontadas pelos especialistas para que a China faça vultosos aportes em
infraestrutura é sua capacidade de poupança, situação bem distinta da
brasileira, que convive com restrições orçamentárias. O investimento público em
transporte no Brasil chegou próximo a 2% do PIB (patamar apontado como ideal)
em meados da década de 1970. [Brasil sob Governo Militar.] Desde então, seguiu ladeira abaixo até cair para
0,16% do PIB no ano passado. Paralelamente, as tentativas de mobilizar a
iniciativa privada não foram suficientes para superar as deficiências. — Não
temos nem investimento público nem modelos de concessões claros e seguros para
atrair o capital privado. Precisamos de planejamento de longo prazo — diz
Maurício Lima, do Ilos.
FOCO NO
CALENDÁRIO ELEITORAL
A
disparidade entre dados oficiais e de mercado dá uma dimensão de quão frágil é
o planejamento estratégico do setor. A Associação Nacional dos Transportadores
Ferroviários (ANTF), que reúne gigantes do setor como Vale, Rumo e MRS, costuma
usar em suas apresentações dados do Ministério dos Transportes que apontam a
parcela das ferrovias no transporte de cargas no Brasil em 25%. Já a Empresa de
Planejamento e Logística (EPL), órgão estatal, após recente revisão
metodológica, diz que o percentual é de 15%, enquanto o Ilos trabalha com 20%.
Foi nesse
vácuo de planejamento e de investimento que as rodovias foram crescendo. Elas
são menos complexas e mais baratas que as ferrovias ou hidrovias e conseguem
ser concluídas em menos tempo. Como os governos se pautam pelo calendário
eleitoral, dizem especialistas, a descontinuidade impera num setor cujos
projetos precisam de tempo para maturar. Não faltaram programas de concessões:
Avançar, PACs, PIL 1 e 2, Crescer. A cada mandato, novas concessões eram
previstas, mas pouco saía do papel. O resultado é que, na área de ferrovias,
por exemplo, a malha em operação hoje é menor do que a que existia antes do
processo de privatização da Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima (RFFSA),
estatal que operava ferrovias brasileiras até 1996. — Naquela
época, a estatal que cuidava das ferrovias estava quebrada. O governo queria se
livrar de um estorvo financeiro. Os contratos tinham falhas, que reconhecemos
hoje. Por exemplo, não havia obrigatoriedade de expansão da malha nem de
investimento. As únicas metas eram de produção (capacidade de transporte) e de
segurança (redução de acidentes) — lembra Fernando Paes, diretor executivo da
ANTF.
Mais
recentemente, no governo de Dilma Rousseff, houve uma tentativa de alterar o
modelo de concessão. O usuário da ferrovia pagaria um pedágio ao governo pelo
uso da via de acordo com o volume de carga transportado, e o governo pagaria à
concessionária pela capacidade ofertada na rede. A ideia era quebrar o modelo
verticalizado que vigorava no Brasil, em que o usuário da ferrovia é também o
dono da concessão. Mas houve uma chiadeira do setor e a proposta não foi à
frente. Assim, no balanço de quase seis anos de mandato, nenhuma linha férrea
foi concedida à iniciativa privada, nas contas de Paes. O governo chegou a
tentar construir dois trechos de ferrovias para posterior licitação, mas faltou
dinheiro no meio do caminho e o projeto foi abortado.
CONFIRA:
Agora, o
governo de Michel Temer tenta renovar antecipadamente cinco contratos de
concessão, que vencerão entre 2026 e 2028, mediante novos investimentos. As
discussões se arrastam desde a gestão Dilma, mas a expectativa, segundo Paes, é
que ao menos quatro desses contratos sejam renovados por mais 30 anos em 2018.
Eles incluem duas ferrovias da Vale, a MRS e a malha paulista da Rumo.
SETOR
FERROVIÁRIO PAGARÁ MAIS IMPOSTO
O modelo
verticalizado das ferrovias brasileiras, típico de países que são grandes
produtores de commodities, como EUA e Austrália, pode ser um limitador para a
expansão do modal, na avaliação de Maurício Lima, da Ilos. Isso porque o dono
da concessão pode não ter interesse em ampliar a oferta de vagões na linha,
pois isso poderia comprometer o tráfego do seu produto. Como nas rodovias não
há esse empecilho e caminhões são bem mais baratos que locomotivas, o volume de
carga transportado nas estradas aumenta sem garantia de que esse crescimento
seja acompanhado de investimento em melhorias nas vias. - O
modelo rodoviário é muito pulverizado. São quase 700 mil autônomos e mais de
150 mil empresas de transporte. Qualquer um pode entrar. O problema é que não
há investimento na infraestrutura para suportar o crescimento da demanda —
avalia Lima.
Essa
característica do sistema rodoviário reforça a opção política histórica do Brasil
pelas rodovias, desde o governo de Juscelino Kubitschek, nos anos 1950. Isso
acabou criando um ambiente para o desenvolvimento de negócios que orbitam em
torno do modelo, desde fábricas de veículos e autopeças a postos de gasolina.
Eles representam grupos de interesses, diz Frischtak, que fazem pressão sobre o
governo para que a concorrência de outros modais não avance.
Um claro
exemplo foi a manutenção da desoneração da folha de pagamento para o setor
rodoviário, uma das reivindicações do caminhoneiros grevistas. O segmento de
ferrovias deixará de contar com a benesse, ao lado de tantos outros setores
econômicos. O tratamento diferenciado entre os modais tem vários outros capítulos
recentes, que ajudam a manter o desequilíbrio da matriz dos transportes. Na
época em que o governo pressionava a Petrobras para não reajustar alguns
derivados do petróleo, como diesel e gasolina, não havia qualquer tentativa de
controle sobre o preço do bunker, combustível dos navios. Após a crise global
de 2008, o BNDES também passou a financiar a aquisição de caminhões com crédito
barato, sob alegação de que isso dinamizaria a economia. — A frota
aumentou, elevando a oferta de transporte nas rodovias. Enquanto a economia
estava em expansão e o preço do diesel estava sob controle, a capacidade
adicional se ajustou à demanda. A recessão, aliada à liberação dos preços do
diesel e ao excesso de capacidade foi uma combinação explosiva, que culminou na
greve dos caminhoneiros. Foram erros de política econômica que levaram à
situação atual — afirma Frischtak.
Carlos da
Silva Campos Neto, especialista em infraestrutura do Ipea, pondera que, quando
os caminhoneiros cruzam os braços, isso provoca transtornos em qualquer país,
pois as rodovias exercem papel fundamental na rede de transportes, conectando
as malhas ferroviária, dutoviária ou hidroviária. Além disso, são mais
competitivas que os modais concorrentes em distâncias abaixo de 400
quilômetros. A Associação Brasileira de Concessionárias de Rodovias (ABCR)
também frisa que, quando se trata de qualidade, é preciso separar as rodovias
concedidas das operadas pelo Estado e cita um estudo da Confederação Nacional
do Transporte (CNT) que mostra que as 19 melhores rodovias brasileiras estão
sob concessão.
O Globo
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