Projeto emperrou em trocas de governo, crise econômica e falência de fornecedores
Diretor de desenvolvimento nuclear da Marinha, Almirante André Luis Ferreira Marques ri enquanto encaixa um capacete na cabeça. Alguns metros atrás dele, um grupo de operários serra, solda e encaixa componentes em um imenso tubo metálico, com 10 metros de diâmetro. O canteiro de obras fica no Centro Experimental Aramar, uma instalação de pesquisa e desenvolvimento da Marinha em Iperó, no interior de São Paulo. — Eu brinco que a gente devia chamar isso aqui de operação Lázaro — diz.
Ali, aos poucos, ganha forma o protótipo daquele que será o primeiro submarino nuclear brasileiro.É ele que a equipe do almirante diz trazer dos mortos, como Lázaro, o personagem bíblico. Um projeto acalentado pela Marinha há pelo menos 40 anos e que, garante o governo, deve estar pronto até 2028. Depois de uma sucessão de atrasos e crises, o ritmo das obras em Aramar dá certa impressão de urgência. Numa espécie de galpão ainda em construção, cerca de 700 homens se revezam na montagem do protótipo, em tamanho real, que vai testar o sistema de propulsão do submarino. Um submarino nuclear funciona como uma espécie de navio a vapor sofisticado. Nessas máquinas, um reator nuclear — alimentado com urânio — aquece a água que, transformada em vapor, vai movimentar turbinas que geram eletricidade e colocam o barco em movimento.
Uma das atribuições de Marques e sua equipe é assegurar que todas as peças desse sistema se encaixem perfeitamente:— A gente monta esse protótipo para garantir, por exemplo, que o reator vai caber dentro do casco do submarino — diz — Há casos, fora do Brasil, em que aconteceu de essas peças não encaixarem.
PERCALÇOS PELO CAMINHO
Erros desse tipo nem passam pela cabeça de quem trabalha no projeto brasileiro, que já sofreu com percalços suficientes desde que começou a ser pensado. As primeiras discussões sobre a necessidade de o Brasil possuir um submarino nuclear começaram em 1978. O equipamento era considerado essencial para garantir a defesa da costa nacional.
— A função de qualquer submarino é ser um elemento de dissuasão. Como não é visto da superfície, quem pensar em invadir as águas nacionais vai ficar em dúvida quanto a se há um submarino na região ou não — explica Sérgio Miranda, capitão de Mar e Guerra.
A vantagem da variante nuclear é o tempo de autonomia. Submarinos convencionais precisam vir à tona mensalmente, recarregar as baterias. Os nucleares podem ficar até três meses submersos. Desde a década de 1970, o Programa Nuclear da Marinha se dedica a pesquisar e desenvolver tecnologias que viabilizem o projeto. Foi ele que desenvolveu o reator que equipará a máquina. Foi a Marinha quem dominou o ciclo de enriquecimento do urânio — o combustível usado nessas máquinas. O mineral é abundante no país. Mas sua variante mais comum, o urânio-238, não é adequado para gerar energia. Para esse fim, é usado o urânio-235, e o processo de enriquecimento consiste em aumentar as concentrações dessa variante em uma amostra do mineral. É algo complexo. — Nós desenvolvemos a tecnologia necessária para isso. E isso foi bom para a sociedade — diz Marques.
Esses esforços trouxeram benefícios para o setor energético. Hoje, essa tecnologia de enriquecimento de urânio é usada para produzir o combustível utilizado nas usinas nucleares de Angra do Reis. O projeto de submarino propriamente, por outro lado, avançou a passos lentos. Pesaram contra ele as mudanças de prioridade para o setor, que variaram conforme mudaram os governos. — Entre 1997 e 2007, o projeto vegetou — diz Miranda. A situação melhoraria em 2008, quando o governo Lula criou o Programa de Desenvolvimento de Submarino com Propulsão Nuclear (Prosub). A construção do reator continuou a cargo do programa Nuclear da Marinha. Mas o restante passou para o bojo do Prosub.
Além de viabilizar o submarino nuclear, o novo programa envolvia um acordo de transferência de tecnologia com a França, para a construção de quatro submarinos convencionais. Eles deveriam ser montados, através de uma parceria entre uma empresa francesa e o braço de defesa da Odebrecht, em um estaleiro em Itaguaí, no Rio de Janeiro. Na ocasião, o cronograma previa que o protótipo de Aramar ficasse pronto em 2019 e que o submarino completo fosse ao mar em 2025. O calendário precisou se ajustar à crise econômica que assolaria o país a partir de 2014. — Continuamos a construção do protótipo, mas em ritmo mais lento. Em 2015 e 2016, tivemos que dispensar muitos profissionais.Mesmo a empresa que fabricou o casco do nosso protótipo foi à falência — diz Marques.
Nesse meio tempo, em Itaguaí, o Prosub também assistiu a lances dignos de novela. Em 2016, virou alvo da Lava-Jato, quando um dos delatores da Odebrecht, Benedicto Júnior, afirmou que a empreiteira repassara R$ 17 milhões ao PT saídos do orçamento do programa. Naquele mesmo ano, o almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva, um dos pais do programa nuclear da Marinha (mas que já não tinha vínculos com ele), foi preso, acusado de receber propina das empreiteiras envolvidas na construção da usina de Angra 3. Segundo delatores, ele teria recebido dinheiro do Prosub também.
A Marinha negou envolvimento nas irregularidades. Hoje, o governo garante que os problemas financeiros foram superados. Marques conta que os dois reatores, que devem equipar o protótipo e o submarino final, já foram fabricados e só aguardam o momento de ser montados e testados. O governo espera investir R$ 2,2 bilhões nessa etapa do processo até 2021. Em Itaguaí, o governo já investiu R$16 bi no Prosub e espera que o investimento total fique na faixa dos R$30 bilhões. — Parece muito dinheiro mas, em comparação ao que outros países gastaram, sai barato — diz Marques.
O Globo - FAP
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