O que o ministro Paulo Guedes tentou explicar
Há grandes riscos no cenário de não aprovação da reforma da Previdência, mas é melhor entendê-los sem os exageros do ministro Paulo Guedes
O ministro Paulo Guedes tingiu com cores fortes o futuro sem a reforma da Previdência. Disse na entrevista à “Veja” que o mercado fugiria, e o país seria “engolfado”. Num primeiro momento, viraria a Argentina, que tem hoje uma inflação de 40%, depois viraria a Venezuela, cuja economia está em colapso. Há riscos adiante de nós, de fato, mas é melhor entendê-los sem exageros nem soluções mágicas.
O que o ministro tentou explicar é que a reação natural do mercado financeiro é se antecipar aos riscos. Mas os bancos, corretoras e fundos não estão desligados da população em geral, que tem aplicações financeiras. Quando Paulo Guedes diz que “o mercado foge”, ele está falando que investidores vão procurar outros tipos de ativos, reduzindo o dinheiro disponível para os títulos da dívida pública. Os grandes investidores no Brasil são os fundos, de pensão ou formados pelos bancos para seus clientes. Essa fuga não será de meia dúzia de banqueiros. Ela só ocorrerá se os investidores brasileiros, pequenos, médios ou grandes, começarem a ter dúvidas sobre a capacidade de o Tesouro pagar a dívida.
A reforma da Previdência não é nem a solução milagrosa se for aprovada, nem o estopim da bomba atômica caso não seja aprovada. Mas o Brasil está diante de um cenário realmente perigoso. A dívida pública bruta subiu muito nesta década. Estava em 52%, em 2011, está agora em 78%, e terminará o ano que vem em 79%, se a reforma for aprovada. A dívida é cara, a dinâmica do seu crescimento é acelerada, os papéis têm prazos curtos, os déficits anuais alimentam a alta do endividamento público.
A reforma da Previdência diminui o ritmo de aumento das despesas com aposentadorias e pensões, permitindo que a dívida suba mais devagar. Se outros passos forem dados, a economia retomará o crescimento. Portanto, é fato que uma reforma que enfrente o déficit da Previdência melhorará o quadro econômico. Mas existem outros obstáculos a serem superados. E, mais importante, o cenário de fim do mundo traçado por Paulo Guedes não se concretizará porque o país vai agir antes.
Quando a inflação chegou a 10%, o governo Dilma caiu. O Brasil não toleraria conviver com inflação crescente como a Argentina tem feito. Os índices subiram no período Kirchner, caíram um pouco no governo Maurício Macri e voltaram a subir. Desde 2011, a inflação por lá está em dois dígitos. No Brasil, dois meses foram suficientes para derrubar a popularidade da então presidente. Se voltar a ocorrer, o governante da vez terá queda forte de popularidade e, provavelmente, perderá o mandato.
O cenário Venezuela é ainda mais longínquo. O ministro está ameaçando com um fantasma que, felizmente, não ronda o Brasil. Uma crise tão profunda quanto a que atinge o nosso vizinho demora a ser construída. Foram anos de erros sequenciais na condução da política econômica, do uso da fonte do petróleo para comprar uma base de apoio entre os pobres e corromper as Forças Armadas, de truques seriais para minar as instituições democráticas. O Brasil não toleraria tal dissolução do tecido social. O governo Bolsonaro sempre fala da Venezuela quando quer assustar os brasileiros e dizer que o vizinho está assim porque o chavismo é de esquerda, e ele, Bolsonaro, nos salvará deste destino. Primeiro, o chavismo se diz de esquerda, mas é apenas um governo incompetente e autoritário. O erro da esquerda brasileira é cair na armadilha de defender o indefensável governo de Caracas. Segundo, se o Brasil precisar de uma única pessoa para nos salvar do destino venezuelano já estaremos no destino venezuelano. O que fez aquela tragédia foi o salvacionismo populista.
A reforma da Previdência é fundamental, mas não é o fim da crise. Nas próximas décadas teremos que voltar a esse tema. A que foi proposta por Paulo Guedes reduz algumas desigualdades, mas não é verdade que o governo está “propondo fechar a fábrica de privilégios”. Muitos deles vão permanecer. O principal recado que o ministro quis passar foi o de que ele pode deixar o cargo, caso não seja aprovada a reforma que ele quer. “Pego avião e vou morar lá fora.” O que falta no raciocínio dele é a compreensão de que o governo terá que trabalhar melhor se quiser a reforma aprovada.
Miriam Leitão, jornalista - O Globo
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