O debate sobre o decreto presidencial relativo à posse e ao
porte de armas terminou por enveredar por um terreno pantanoso, em que
se misturam questões de princípio com preconceitos contra os que
defendem o direito à legítima defesa, para além da observância das
regras de um Estado de Direito.
Preliminarmente, convém observar que armas não matam, da mesma
maneira que veículos não assassinam ninguém. Armas e carros são tão
somente instrumentos, cujo uso, sob determinadas condições, diz respeito
à responsabilidade individual. Um indivíduo não pode evidentemente
dirigir bêbado nem alguém com ficha policial ou desequilibrado ter
direito à posse e ao porte de armas. São pessoas que atiram ou dirigem
automóveis de forma imprudente ou inadequada. Instrumentos são meros
meios, não produzindo efeitos por si sós. Poder-se-ia, então, igualmente
dizer que carros matam, advogando pela sua abolição, considerando a
alta taxa de acidentes mortais. Alguém concordaria?
Quando ouvimos ditos especialistas emitindo opiniões do tipo “armas
matam” ou “armas” são responsáveis por tal taxa de homicídios, estamos
presenciando o dizer de rematadas besteiras. Há uma questão moral em
pauta, concernente à responsabilidade e à liberdade individual, pilares
de uma sociedade livre e democrática. Se o Estado cerceia a liberdade e
coíbe a responsabilidade, o caminho está aberto para intrusões de
caráter autoritário. Que o Estado cumpra ou não a sua missão relativa à segurança pública,
isso não interfere numa questão de princípio, relativa à liberdade
individual. O ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, bem frisou
este ponto ao distinguir essas duas perspectivas de abordagem da
questão. Os que não pretendem reconhecer o direito à legítima defesa
fogem da verdadeira discussão ao salientarem que o problema da segurança
pública não será, assim, equacionado. Claro que não será, por não ser
isso que está em jogo.
Contudo, a segurança pública piora ainda mais na ausência do direito à
legítima defesa quando os cidadãos se encontram indefesos, não sendo o
Estado capaz de preencher esta sua função primordial. Imaginem uma
família na zona rural sendo objeto de assalto ou tentativa de homicídio.
Desarmada, é uma presa fácil para qualquer grupo de bandidos, que goza
ainda mais de tal superioridade por saber que essas pessoas não podem
ter a posse de armas! São defensores legítimos do desarmamento da
população! Imaginem, ainda, em zona urbana, uma casa ou apartamento
sendo objetos de roubo ou de ataque físico. Devem as pessoas ficar
inertes, vendo os seus serem vítimas de violência física ou sexual?
Assinale-se, ainda, que boa parte dos que defendem o desarmamento da
população vive em condomínios altamente protegidos, usufrui de carros
blindados ou, mesmo, de guarda-costas, alguns armados. Por que essas
pessoas não se colocam na posição do outro, em vez de fazerem
declarações hipócritas?
Dito isso, há uma outra questão de princípio envolvida, desta feita
relativa ao decreto presidencial. E ela diz respeito aos ritos que devem
ser seguidos no Estado de Direito. Não convém esquecer que decretos são
instrumentos legais de regulamentação de leis, devendo ser observado o
que estas estipulam. Vigora no País a “Lei do Desarmamento”, não podendo
um decreto regulamentá-la segundo o princípio do desarmamento. A
contradição é evidente ao pôr em xeque dois princípios antagônicos, um
na lei, outro no decreto.
Nesse sentido, o Senado teve toda razão em anular o decreto
presidencial. Embora a intenção do presidente Bolsonaro tenha sido
correta ao fazer valer o princípio da liberdade individual e do direito à
legítima defesa, o instrumento utilizado para realizar esta sua
bandeira de campanha foi inadequado. Deveria ter recorrido a um projeto
de lei, pois apenas uma lei pode substituir uma outra lei, e um decreto
não pode, evidentemente, preencher essa função. Entretanto, seja dito a favor do presidente que outros presidentes
utilizaram decretos para inviabilizar uma lei ou restringi-la, vindo,
assim, a praticamente anulá-la. O presidente Lula, por exemplo, dispôs
de um decreto para trair completamente o espírito do referendo sobre o
desarmamento, quando a população brasileira votou majoritariamente pelo
direito à legítima defesa, pela liberdade individual, e se viu
confrontada a um ato administrativo que desautorizou o que tinha sido
legitimamente e legalmente decidido. No caso, um decreto presidencial
que se voltou contra um referendo. Um absurdo, do ponto de vista lógico e
político.
Um erro, porém, não convalida o outro. Permite ver, evidentemente, o
cinismo de alguns e a sua não observância de valores, agindo apenas ao
sabor das circunstâncias, mas a questão de fundo permanece inalterada. O
Estado de Direito passa pelo cumprimento de regras atinentes às
relações entre o Poder Executivo e o Legislativo, em que suas
respectivas competências exigem de cada uma das partes o respeito à
outra e a utilização de diplomas legais que sigam o ordenamento
institucional.
Recorrer ao uso intensivo das redes sociais como forma de mobilização
do “povo” somente escamoteia o problema central, pois o “povo” nada
mais é que este setor da população que assim se organiza e procura impor
a sua posição. Deveria valer, aqui, o diálogo parlamentar segundo os
princípios constitucionais. Senadores e deputados não podem – nem devem –
responder a ditos anseios “populares”, se eles vierem a circuitar os
princípios mesmos da Constituição, que regram estas questões e todas as
outras, no futuro, que vierem a ela ser submetidas.
O Estado de Direito é um modo de organização do Estado e da sociedade
que não pode ficar à mercê de um mero jogo político, qualquer que seja,
e por mais importantes que sejam os valores veiculados. Princípio que
é, ele se situa acima dos atores políticos e dos próprios Poderes
individualmente considerados.
Denis Lerrer Rosenfield - O Estado de S. Paulo
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