“A queda de braços entre o Congresso e o presidente Jair Bolsonaro pode resultar num processo de descentralização do poder e fortalecimento da democracia”
A Câmara dos Deputados entrou num processo vertiginoso de discussão em plenário para aprovação da reforma da Previdência ainda nesta semana. Não é uma discussão feita de afogadilho, como afirma a narrativa dos que se opõem à reforma, legitimamente, diga-se de passagem. Na verdade, trata-se de mais uma etapa de mudanças no regime previdenciário iniciadas no governo de Fernando Henrique Cardoso, complementadas parcialmente durante o governo Luiz Inácio Lula da Silva e embarreirada no governo de Michel Temer, em razão das denúncias [infundadas] do ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot.
A discussão de mérito sobre a reforma tem dois vetores: o demográfico, que alterou profundamente os cálculos atuariais de Previdência — cada vez menos jovens trabalhando, e idosos vivendo mais, o que torna o atual modelo financeiramente insustentável; e o da desigualdade — os servidores públicos se aposentam com salário integral e outros privilégios, e trabalhadores do setor privado, com, no máximo cinco salários mínimos, a maioria após os 65 anos. Essa discussão poderá ser acompanhada em tempo real nos próximos dias. [trabalhadores privados contribuem no máximo sobre aproximadamente cinco salários mínimos e servidores públicos contribuem sobre o salário total.]
Mas há uma outra questão que precisa ser valorizada neste momento: o protagonismo do Congresso na relação com o Executivo. Entre idas e vindas, para aprovar a reforma da Previdência, a Câmara dos Deputados conseguiu entrar em sintonia com a maioria da opinião pública e os agentes econômicos, formando a massa crítica necessária para a mudança em curso. Haverá sacrifícios para as gerações futuras, os mais pobres terão um ônus maior ainda, e os servidores públicos das corporações mais poderosas não perderão todos os seus privilégios. Mas haverá um avanço considerável do ponto de vista da necessidade de reduzir o deficit fiscal e destravar a economia. A estimativa de economia em torno de R$ 900 bilhões em 10 anos é realista. [a Câmara na realidade manipulada por Rodrigo Maia se apropriou da reforma encaminhada pelo presidente Bolsonaro, retirou alguns pontos, aproveitou o que sobrou, incluindo as medidas mais importantes e que são a estrutura da reforma que agora a Câmara diz ser sua.]
Nem começou a votar a Previdência, o Congresso também se prepara para produzir uma reforma tributária que simplifique e desonere a vida dos agentes econômicos, equalize melhor o pagamento de impostos por consumidores e redistribua a arrecadação entre a União, estados e municípios. Há de parte desses entes federados grandes expectativas em relação a isso, ainda mais, agora, que foram excluídos da reforma da Previdência dos servidores federais e terão que fazer o seu próprio ajuste. Não será em torno da Previdência que se fará uma política de descentralização e resgate da Federação; é a reforma tributária que terá esse papel.
Sístoles e diástoles
Ontem, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), anunciou que pretende pôr em votação a reforma tributária, há anos em discussão no Congresso, e mandá-la de volta para a Câmara, onde o presidente Rodrigo Maia (DEM-RJ) pretende instalar, o quanto antes, a comissão especial que tratará da matéria. Essa dobradinha não somente fortalece o parlamento, como cria uma sinergia com estados e municípios no sentido de promover um processo de descentralização de poder nos marcos da atual Constituição. No Brasil, isso não é pouca coisa: como disse certa vez o general Golbery do Couto e Silva, ao fundamentar a estratégia de distensão do governo Geisel, desde a abdicação de D. Pedro I, a política brasileira passou por momentos de sístoles e de diástoles.
A analogia cardiológica faz sentido: a contração ventricular é conhecida como sístole (esvaziamento dos ventrículos); o relaxamento ventricular é conhecido como diástole. Nessa fase, os ventrículos recebem sangue dos átrios. Os processos de concentração de poder na União e descentralização, com autonomia dos estados, quase sempre ocorreram com rupturas institucionais, algumas sangrentas. Foram raros os momentos da história do Brasil em que esse fenômeno correu sob os marcos do mesmo texto constitucional, como na sucessão de Floriano Peixoto por Prudente de Moraes, na República Velha. Na economia, esse movimento se traduziu, por exemplo, na política liberal, mas centralizadora, do ministro Joaquim Martinho (moeda forte e povo miserável), no governo de Campos Sales, e no Convênio de Taubaté, acordado entre São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, que conseguiu estabilizar e recuperar o preço do café, e cujo papel foi intervencionista na economia, mas descentralizador no plano político.
Em outros momentos, esses fenômenos de contração e descontração se deram pela ruptura, como na Revolução de 1930 (sístole), na democratização de 1945 (diástole), no golpe de 1964 (sístole) e na eleição de Tancredo Neves em 1985 (diástole). A Constituição de 1988, por uma série de emendas, pela legislação infraconstitucional e devido à política arrecadadora da União, que tungou estados e municípios, não conseguiu impedir o gradativo processo de concentração de poder no governo federal. A própria burocracia federal se julga mais capaz de gerir os recursos da nação do que estados e municípios. É surpreendente, pois, na atual conjuntura, que a queda de braços entre o Congresso e o presidente Jair Bolsonaro possa resultar num processo de descentralização do poder e fortalecimento de nossas instituições democráticas. Isso é possível de forma negociada no Congresso e sem ruptura institucional. São coisas da política que só acontecem na democracia.
Nas Entrelinhas - Luiz Carlos Azedo - CB
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