Caro
leitor,
Em 28 de
junho de 1935, o escritor francês Romain Rolland entrou no
Kremlin para entrevistar Stalin. É conhecida a conversa que se seguiu. Rolland,
que se dizia pessimista com inteligência, mas otimista pela vontade', perguntou
ao ditador por que não haviam debates judiciários públicos e regulares antes
das condenações e execuções das pessoas chamadas de terroristas pela imprensa
soviética. Stalin respondeu usando o exemplo dos assassinos de Serguei
Kirov.
O chefe
do partido em Leningrado fora morto em 1.º de dezembro de 1934, no Instituto
Smolny, onde trabalhava. Kirov era um popular líder bolchevique. O
assassino lhe deu tiro no pescoço. E Stalin aproveitou o crime para iniciar o Grande Terror, matando quase um milhão de
pessoas. "Teríamos honrado demais esse senhores se tivéssemos examinado
seus delitos em processos com a participação de advogados", afirmou.
Stalin
disse ainda que era claro a todos que, depois do assassinato de Kirov, os
criminosos não se deteriam. "Para prevenir esses crimes tivemos de assumir
a desagradável tarefa de fuzilar esses senhores. Essa é lógica do poder. O
poder em circunstâncias semelhantes deve ser forte, claro e impávido; de outra
forma, não será poder e não será reconhecido como tal." Augusto Heleno
pode não conhecer o episódio ou as palavras do georgiano. Mas sua nota em
reação ao pedido de apreensão do telefone celular de Jair Bolsonaro trata o
exercício do poder com a mesma lógica do ditador comunista.
O filósofo Luciano Canfora descreve a cena em seu
livro La natura del potere. E trata de uma das manifestações do
poder: o cesarismo, esse tipo de regime que exprime sempre uma
solução arbitral, confiada à grande personalidade, ao líder, para resolver uma
situação de equilíbrio de forças, diante de uma perspectiva catastrófica,
quando a situação só pode se concluir com a destruição recíproca. No Brasil,
Heleno enxerga conflito institucional, onde as associações de
magistrados veem apenas vontade de se subtrair à lei e à Justiça.
Este é um
governo cujo chefe usa um helicóptero da Presidência para um sobrevoo a
fim de produzir cenas de mídia de uma ação político-partidária com o dinheiro
público. Nada mais espanta. As relações de amizade se sobrepõem ao cumprimento
das leis, ao interesse público e ao zelo no uso do dinheiro do contribuinte.
Trata-se de um governo que o ministro Sérgio Moro diz ter deixado de lado a
luta contra a corrupção em nome do direito de proteger amigos e filhos. Diante
da ciência e dos fatos, Bolsonaro e seus apoiadores militares preferem crer nas
mentiras do WhatsApp. [o questionamento, ou crítica contra, uso de um
helicóptero para transportar o presidente da república - direito
inerente a sua condição de primeiro mandatário da nação - suscita
abordar outro ponto.
Alguns noticiários tem dado destaque a um suposto crime que
o presidente Bolsonaro estaria cometendo ao não usar máscara - decreto do
GDF tornou obrigatório o uso de máscara em locais públicos do DF.
Aquela área - imediações do Palácio do Planalto - é área
pública? sujeita à jurisdição do Governo do Distrito Federal?
Quando da instauração do inquérito secreto contra fake news
e ameaças a ministros do STF, Dias Toffoli deixou patente considerar que
qualquer ponto do território nacional, no qual esteja presente um ministro
do Supremo é sede do STF.
Se for, vale o mesmo para qualquer local em que o presidente
da República esteja presente. Certo?
Assim, se há alguma dúvida sobe aquela área, no dia a dia,
estar fora da jurisdição do GDF, com a presença do presidente não há dúvidas da
extraterritorialidade distrital = área não sujeita as normas decretadas pelo
GDF ou CLDF.]
Uma parte
deles, reunida na confraria dos colegas de turma de Heleno,
resolveu defender o governo com um manifesto - mais um neste País. Não
bastam cargos, salários e benefícios: há quem deseje ainda ter o direito de
ameaçar as instituições. Como classificar de outra forma o
documento assinado pelos 103 da turma de 1971 da Academia das Agulhas
Negras, achincalhando ministros do Supremo e destilando ódio contra quem aponta
os desmandos do governo ou procura fazê-lo cumprir as leis? E lá veio mais
outra nota do ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva...
Entre os
signatários da carta de apoio a Heleno estava o general Luiz Eduardo Rocha Paiva, assessor do
Ministério dos Direitos Humanos, aquele que é dirigido por uma senhora que
desconhece quais são os limites de sua autoridade e suas atribuições legais.
Escrevem os amigos de Heleno: "Temos acompanhado pelo noticiário das redes
sociais..." Nem precisavam dizer que é pelo zap que se informam,
assim como o presidente, que prefere a rede social aos relatórios da Abin e do
Centro de Informações do Exército.
Mas a
turma de 1971 não é a única que acha que pode ameaçar a República. E acredita
ter a razão ao seu lado. Há três dias os grupos de Whatsapp de militares
foram invadidos por mensagens golpistas. Ofensas à democracia e aos
demais poderes se multiplicam. Há publicações chulas. Xingam ministro do
Supremo com palavras de estádio de futebol, "Às favas com os escrúpulos da
consciência", disse o então ministro Jarbas Passarinho em outra famosa reunião ministerial.
Era 12 de dezembro de 1968. E daquela reunião saiu o AI-5. O palavreado de
Passarinho seria considerado "teórico" ou por demais "comportado"
pela turma do zap.
Os amigos
de Heleno se desinformam no zap. Mas nele acreditam. E buscam fazer o País
crer que ameaçam o Supremo e o Congresso em nome da Nação. Mas não respondem por
que o presidente precisava nomear o superintendente da PF no Rio. Não explicam
as indagações feitas por Moro sobre as alianças de Bolsonaro com o Centrão. Ou
o que Heleno sabe existir no celular do presidente que a Justiça não pode ver.
Heleno e todos os que permanecem nesse governo depois dos comportamentos
exibidos na reunião ministerial do dia 22 mostram que mantêm uma unidade de
desígnios com o chefe e concorrem para os atos praticados no governo.
Escrevem
os amigos de Heleno que o STF traz insegurança e instabilidade ao País,
"com grave risco de crise institucional, com desfecho imprevisível, quiçá,
na pior hipótese, guerra civil" O que podem fazer os amigos de Heleno?
Dar um golpe? Acreditam eles que vai haver anistia depois? Heleno devia
ouvir outros colegas. "Retaliações retóricas vão se sucedendo até chegar a
um ponto em que o diálogo se torna impraticável. Triste realidade essa nossa.",
disse um general da ativa. Outro afirmou: "A função dos verdadeiros
jornalistas, militares políticos etc é promover esperança. Não precisa esconder
nada".
Heleno
tem certeza de que todo profeta armado vence, e os desamados arruinam-se.
Quando não mais acreditarem nele, que pelo menos creiam em sua força. Pensa,
talvez, que o poder não se divide a não ser por meio de guerra civil. Nosso
aprendiz de Maquiavel destila o medo hobbesiano que já cobriu o País com seu manto escuro no
passado. Devia aprender que a substância de todo poder, qualquer que
seja a classe dominante, é se organizar em torno de alguém dotado de maior
capacidade e competência. Cabe a Heleno e aos seus amigos mostrarem à Nação
onde estava tal homem na reunião ministerial de 22 de abril.
Marcelo Godoy, jornalista - O Estado de S. Paulo
Marcelo Godoy, jornalista - O Estado de S. Paulo
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