Leandro Karnal
Com sorriso permanente, o pequeno menino conseguiu tocar aquela alma viscosa
Leocádia
é assistente de secretaria da Escola Estadual Professor Heitor Furtado
de Mendonça, na Baixada Santista. Ela não está em uma situação tão ruim
comparada à das irmãs. Seu emprego é estável. O salário é baixo, porém,
somado ao do marido e sem pagar aluguel, ela vive uma vida mediana e sem
necessidades estruturais.
Leocádia não é boa em muitas coisas, mas há algo no qual ela é notável. Do nascer ao pôr do sol (e segundo seu marido às vezes dormindo), ela reclama incessantemente. Reclama do transporte público apertado e com pessoas inconvenientes, lamenta a chuva que cai ou que não chega, ataca o frio e deplora o calor. Fala diariamente do horror da comida no quilo perto da escola onde trabalha. “Um verdadeiro grude de prisão”, diz. No campo pessoal, Leocádia tem ojeriza a seus colegas. Nossa secretária é absolutamente imersa no azedume cotidiano de sua vida. Sua boca só abre para emitir juízos negativos.
Assim viveu a funcionária da escola estadual durante anos. Na mesma toada crítica, redigiu atas de conselho e acompanhou semanas de planejamento pedagógico com o tom de lamúria eterna. “Leocadiar” virou dialeto da unidade, usado quando alguém ficava protestando de forma assertiva. As aulas se iniciaram e tudo previa um ano como todos. Na quarta-feira, 11 de março, a diretora disse à secretária que receberia uma visita de um candidato definido como um “menino rastejante”. Ninguém teve qualquer compreensão do que se tratava. Era, como disse dona Nídia, alguém que não tinha dinheiro para ter uma cadeira de rodas. Ele não era um cadeirante; tratava-se de um rastejante. Carlos Henrique chegou no dia marcado, como previsto, arrastando-se pelos corredores. A cena comoveu até o pétreo coração de Leocádia.
Acostumado a ser alvo do olhar entre a piedade e horror, nada no rosto de Carlos denunciava o inusitado da sua mobilidade. Ele não reclamou e, desde o primeiro instante, manifestou uma alegria intensa, excepcional para aquilo que parecia visível no julgamento alheio: a desgraça de uma vida tocada pela pobreza e pela restrição física. Como todos perceberam nas semanas seguintes, o novo aluno estava sempre sorrindo, permanentemente tendo o rosto iluminado por uma atitude de felicidade. Ele agradecia a todos pela oportunidade de estudar e louvava os professores sempre. Logo se soube de mais detalhes: a família não tinha dinheiro para uma cadeira de rodas, no entanto, um dia, o almejado bem surgiu pela doação de uma rede de farmácias. Com a cadeira desejada, por quase uma semana, ele exultou. O mundo nem sempre é justo e um bando de marginais decidiu que poderia roubar do menino a cadeira de rodas na parada de ônibus. A família se inscreveu novamente em programas para obter o aparelho, porém recebeu caras de desconfiança como se tivesse vendido bem tão precioso. Carlos Henrique voltou a rastejar.
O sorriso permanente foi se tornando contagioso. A acérrima Leocádia começou a levar água para ele no seu trajeto pelo corredor. Ela se ocupou do caso e ajudou em uma campanha para doação de material escolar. A antiga mal-humorada passou a usar roupas mais alegres e, pela primeira vez em muitos anos, foi notado que ela cumprimentava alguém sem vociferar contra o clima ou o transporte. O pequeno menino alegre tinha conseguido tocar aquela alma viscosa e fez brotar dali como, em um milagre, uma pessoa um pouco mais leve.
Prosseguindo com seu novo self, a secretária promoveu um evento com rifa. O objetivo? Uma cadeira de rodas nova para o aluno. Foi um sucesso! Em uma sexta-feira cheia de alegria, chegou o cobiçado objeto. Carlos chorou, apesar de nunca ter pedido nada. Aquela que fora lamuriosa com ele pranteou, sob aplausos de toda a escola que vibrara com a transformação da mobilidade de um e da alma de outra. O menino rastejante conseguira sua ambicionada cadeira; Leocádia atingira a de espírito.
Há pouco, chegou uma moça para trabalhar na merenda e a novata revelou, desde cedo, um pendor para a crítica constante. Leocádia sorriu e chamou a funcionária em um canto para falar da beleza do mundo e das pessoas que possuem menos do que ela. E pensar que tudo começou quando um jovem sorridente rastejou escola adentro e metamorfoseou a pesada lagarta amarga em borboleta leve e feliz.
Meu estimado leitor e minha estimada leitora, Leocádia eu inventei no exercício ficcional. O menino rastejante existe, como outros na mesma situação. Cadeira de rodas não é tão acessível e muitas pessoas ficam imobilizadas em casa ou rastejam. Ver esse jovem real, creiam-me, ressignifica sua noção de crítica. Boa semana para todos nós que andamos e reclamamos...
Leocádia não é boa em muitas coisas, mas há algo no qual ela é notável. Do nascer ao pôr do sol (e segundo seu marido às vezes dormindo), ela reclama incessantemente. Reclama do transporte público apertado e com pessoas inconvenientes, lamenta a chuva que cai ou que não chega, ataca o frio e deplora o calor. Fala diariamente do horror da comida no quilo perto da escola onde trabalha. “Um verdadeiro grude de prisão”, diz. No campo pessoal, Leocádia tem ojeriza a seus colegas. Nossa secretária é absolutamente imersa no azedume cotidiano de sua vida. Sua boca só abre para emitir juízos negativos.
Assim viveu a funcionária da escola estadual durante anos. Na mesma toada crítica, redigiu atas de conselho e acompanhou semanas de planejamento pedagógico com o tom de lamúria eterna. “Leocadiar” virou dialeto da unidade, usado quando alguém ficava protestando de forma assertiva. As aulas se iniciaram e tudo previa um ano como todos. Na quarta-feira, 11 de março, a diretora disse à secretária que receberia uma visita de um candidato definido como um “menino rastejante”. Ninguém teve qualquer compreensão do que se tratava. Era, como disse dona Nídia, alguém que não tinha dinheiro para ter uma cadeira de rodas. Ele não era um cadeirante; tratava-se de um rastejante. Carlos Henrique chegou no dia marcado, como previsto, arrastando-se pelos corredores. A cena comoveu até o pétreo coração de Leocádia.
Acostumado a ser alvo do olhar entre a piedade e horror, nada no rosto de Carlos denunciava o inusitado da sua mobilidade. Ele não reclamou e, desde o primeiro instante, manifestou uma alegria intensa, excepcional para aquilo que parecia visível no julgamento alheio: a desgraça de uma vida tocada pela pobreza e pela restrição física. Como todos perceberam nas semanas seguintes, o novo aluno estava sempre sorrindo, permanentemente tendo o rosto iluminado por uma atitude de felicidade. Ele agradecia a todos pela oportunidade de estudar e louvava os professores sempre. Logo se soube de mais detalhes: a família não tinha dinheiro para uma cadeira de rodas, no entanto, um dia, o almejado bem surgiu pela doação de uma rede de farmácias. Com a cadeira desejada, por quase uma semana, ele exultou. O mundo nem sempre é justo e um bando de marginais decidiu que poderia roubar do menino a cadeira de rodas na parada de ônibus. A família se inscreveu novamente em programas para obter o aparelho, porém recebeu caras de desconfiança como se tivesse vendido bem tão precioso. Carlos Henrique voltou a rastejar.
O sorriso permanente foi se tornando contagioso. A acérrima Leocádia começou a levar água para ele no seu trajeto pelo corredor. Ela se ocupou do caso e ajudou em uma campanha para doação de material escolar. A antiga mal-humorada passou a usar roupas mais alegres e, pela primeira vez em muitos anos, foi notado que ela cumprimentava alguém sem vociferar contra o clima ou o transporte. O pequeno menino alegre tinha conseguido tocar aquela alma viscosa e fez brotar dali como, em um milagre, uma pessoa um pouco mais leve.
Prosseguindo com seu novo self, a secretária promoveu um evento com rifa. O objetivo? Uma cadeira de rodas nova para o aluno. Foi um sucesso! Em uma sexta-feira cheia de alegria, chegou o cobiçado objeto. Carlos chorou, apesar de nunca ter pedido nada. Aquela que fora lamuriosa com ele pranteou, sob aplausos de toda a escola que vibrara com a transformação da mobilidade de um e da alma de outra. O menino rastejante conseguira sua ambicionada cadeira; Leocádia atingira a de espírito.
Há pouco, chegou uma moça para trabalhar na merenda e a novata revelou, desde cedo, um pendor para a crítica constante. Leocádia sorriu e chamou a funcionária em um canto para falar da beleza do mundo e das pessoas que possuem menos do que ela. E pensar que tudo começou quando um jovem sorridente rastejou escola adentro e metamorfoseou a pesada lagarta amarga em borboleta leve e feliz.
Meu estimado leitor e minha estimada leitora, Leocádia eu inventei no exercício ficcional. O menino rastejante existe, como outros na mesma situação. Cadeira de rodas não é tão acessível e muitas pessoas ficam imobilizadas em casa ou rastejam. Ver esse jovem real, creiam-me, ressignifica sua noção de crítica. Boa semana para todos nós que andamos e reclamamos...
Leandro Karnal, colunista - O Estado de S. Paulo
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