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sábado, 23 de maio de 2020

O doutor Cloroquina ataca outra vez - Editorial - IstoÉ

O presidente Jair Bolsonaro parece estar em um campeonato de aberrações. Quanto mais faz, mais procura se superar. Sem trégua ou descanso. Vai testando, dia a dia, os limites da paciência dos brasileiros. Desesperador alguém com tal predisposição pelo caos. Agora ele parte para o que seja talvez o intento mais tenebroso: colocar vidas em risco. E o faz da pior maneira possível. Politizando receitas de tratamento. 

Desprezando os alertas da ciência. Impondo a vontade a ferro e fogo, em gritante violação ao direito à saúde por vias responsáveis. Estabelecendo na marra protocolos de orientação médica via Ministério da Saúde, sugerindo medicamento — sem nenhum aval da comunidade de especialistas —, porque assim ele consegue a tão sonhada senha para o seu objetivo de estimular a desobediência ao isolamento. Bolsonaro não se emenda. Na base do temos a solução, voltem às ruas, o curandeiro de araque prega o “elixir mágico” da hidroxicloroquina como a alternativa, numa irresponsabilidade criminosa capaz de levá-lo — e seria bom se assim o fosse — aos tribunais internacionais, por ameaça à humanidade. 

Um presidente, sem o menor traquejo ou conhecimento para tanto, querer oferecer a panaceia do tratamento durante uma pandemia com tal grau de letalidade e contaminação é algo pérfido. Repulsivo. Não se prescreve remédio por decreto. Praticamente todas as associações e sociedades médicas de imunologia e infectologia do País, em documento conjunto referendado por 27 autoridades dessas instituições, recomendaram o não uso do fármaco, cujas aplicações são “embasadas em evidência de nível baixo ou muito baixo”. É a primeira vez que essas entidades resolvem se manifestar conjuntamente, dada à ameaça que vislumbram pela frente. As universidades de Harvard, Oxford, Colúmbia, MIT e Virgínia, mundialmente consagradas por suas pesquisas, foram unânimes em apontar que a hidroxicloroquina não reduz mortes, é ineficaz e até capaz de ampliar a quantidade de óbitos entre as vítimas da Covid-19, com resultados perigosos na maioria dos casos. 

Os estudos se amontoam nesse sentido. Um desses trabalhos demonstrou que o número de mortes entre os que usaram a medicação no combate ao coronavírus foi 3,6 vezes maior do que entre os que não a usaram. A insistência, e até mesmo a pressão de Bolsonaro, para estabelecer de qualquer maneira o uso rotineiro, desde o início da manifestação da doença, tem chocado a comunidade científica internacional. E não é para menos. Para um presidente que prega o “se morrer, morreu”, o grau de preocupação com as consequências é próximo de zero. Ou zero mesmo. Alguém que classifica a atual tragédia humana como mera “histeria”, “fantasia”, “resfriadinho” e “gripezinha”, prefere mergulhar a população na ignorância a governar. 

Os dois ministros anteriores que comandavam a pasta não aceitaram assinar o protocolo da prescrição, por respeitarem a ciência. Nenhum obstáculo para o capitão. Mera mudança de peças. Trocou os dois em menos de um mês. Deixou no lugar um militar que segue disciplinadamente as ordens, custe o que custar. Afastou o pelotão de técnicos e aparelhou o ministério com mais de uma dezena de oficiais. Não pode dar certo qualquer iniciativa em cenário tão sombrio, que fere a ética profissional. A orientação em voga daqui por diante é danosa e perversa, deliberadamente. Quantas vidas perdidas podem decorrer daí? 

No caso, cada uma delas terá de ser diretamente atribuída ao chefe da Nação. Bolsonaro não se comove. Dá de ombros. Tripudia do problema, com gracejos que atingem os píncaros do inominável. No mesmo dia em que o Brasil ultrapassava o dramático numero de mais de mil mortes em apenas 24 horas (com um acumulado de quase 20 mil óbitos desde o início, fora casos não notificados), ele resolveu fazer piada da situação, durante “live” que realiza semanalmente. Entre sorrisos e troça, lançou a nova pérola: “quem for de direita toma cloroquina, quem for de esquerda toma Tubaína”. Gargalhadas se seguiram. O capitão divertia-se com a espiritualidade “nonsense” enquanto milhares de famílias enterravam os mortos. Bolsonaro está pouco se lixando. “E daí? Quer que eu faça o que? Sou Messias, mas não faço milagre”, como diz. Perceba e se convença: o mandatário não está preocupado com o que acontece a você, aos seus familiares ou amigos. Viram meras estatísticas. Na cartilha do “mito”, fins justificam os meios. Já deixou isso claro no passado recente. Em determinada ocasião, ele chegou a pregar uma guerra fratricida, na qual poderiam morrer “uns 30 mil” pobres. Sem problema para ele.

Não é de hoje, Bolsonaro adota a narrativa de que morrer é normal e de que a pandemia da Covid-19 não passa de terrorismo. Na patota dos veneradores — por mais estapafúrdia que possa parecer a alienação —, ele é a voz da verdade. [talvez a forma do presidente expressar uma verdade seja inadequada, mas desafiamos qualquer um a provar que ele mente quando diz: 'morrer é normal'. Cabe acrescentar e inevitável.]  O que o Messias diz e estabelece converte-se automaticamente em mantra a ser difundido. Na esgotosfera de redes digitais seguidores vão bovinamente replicando o novo mandamento para converter incautos. E o delírio bolsonarista segue o curso. Insanos engajados tentam dessa feita vender a mensagem da hora da reabertura. É chegado o momento, no entender do rebanho de adoradores. Apesar da escalada dramática de mortes, da expansão acelerada de contaminação, dos novos focos antes imunes à doença. 

Na tese da turma, manietada pelos conceitos do “mito”, vai se morrer de qualquer jeito, então adeus à quarentena! Uma espécie de reinterpretação do conceito de “capitalismo selvagem” cunhado em outra época e circunstância. A barbárie do salve-se quem puder para garantir a economia vem prevalecendo. O bolso em primeiro plano. As vidas, depois. E que Deus tenha piedade. A absoluta reversão de valores dá conta da decadência social em curso por essas  paragens. Na esmagadora maioria dos países, da Europa à Ásia, e mesmo nos EUA de Trump, a mera cogitação de reabertura ficou condicionada ao princípio de uma queda consecutiva nos registros de morte por, ao menos, 14 dias consecutivos. Assiste-se atualmente ao retorno da rotina por lá, justamente segundo tal prerrogativa. Como comprovam as experiências, aqueles locais que aplicaram o isolamento mais rígido desde o início, chegando ao lockdown, saíram mais rápido e com menos danos à economia. Por aqui, não. Uma quarentena meia boca, onde índices de desobediência superavam 50% da população, prevaleceu e o Brasil vai ostentando no momento a triste primazia de liderar as estatísticas da doença. Entramos depois no processo e não aprendemos nada. Poderíamos ter seguido a orientação elementar, das organizações globais de saúde, de parar para depois recomeçar. A turba ruidosa liderada pelo quixotesco capitão não deixou. Ao contrário: promoveu o levante para romper procedimentos e estabelecer falsos protocolos. 

No momento, não há esforço de coordenação por parte do “capitão Cloroquina”. Não existe racionalidade. Apenas confronto. Provocação e abusos de quem nunca pensou em solução. Luta tão somente pela reeleição, na base de artimanhas populistas, para se perpetuar no poder. E libera todo mundo, apesar das mortes que não cessam e aumentam.

Editorial IstoÉ - Carlos José Marques - Diretor Editorial

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