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terça-feira, 26 de maio de 2020

As consequências da crise – Editorial - O Estado de S. Paulo

A palavra “crise”, amplamente empregada para significar qualquer ruptura abrupta e radical, tem origem médica. Nos cânones de Hipócrates ou Galeno o vocábulo grego krisis designa “o ponto de inflexão em uma doença rumo à recuperação ou à morte”. Curiosamente, o termo é derivado da terminologia moral e jurídica: krinein – “separar, decidir, julgar” – da raiz protoindo-europeia krei – literalmente “peneirar”, e daí “discriminar, distinguir”. Na maior crise da nossa era estes sentidos se interpenetram. As perdas em vidas e empregos são catastróficas e os riscos de uma “geração perdida” são reais. Mas conhecendo-os é possível discernir oportunidades de transformação para melhor.

Em números compilados pelo Fórum Econômico Mundial o impacto é sem precedentes: 500 milhões de pessoas podem despencar na pobreza; 
a produção global deve encolher 3%; o comércio, de 13% a 32%; os investimentos estrangeiros, de 30% a 40%; 
mais de 80% dos estudantes estão fora das escolas; e 34% dos adultos experimentam efeitos adversos sobre sua saúde mental.

Após consultar 350 analistas de risco, o Fórum divisou quatro zonas críticas: os riscos das transições econômicas e mudanças estruturais; os riscos de paralisia e retrocesso na agenda do desenvolvimento sustentável; 
os traumas decorrentes das rupturas sociais; 
e os riscos derivados da adoção abrupta da tecnologia.

A recessão econômica domina os temores. “Uma dívida crescente provavelmente onerará os orçamentos públicos e os balanços empresariais por anos, as relações econômicas globais podem ser fraturadas, economias emergentes correm o risco de mergulhar em uma crise mais profunda, enquanto os negócios podem enfrentar condições cada vez mais adversas nos padrões de consumo, produção e competição.”

Essas rupturas podem ter amplas reverberações ambientais, sociais e tecnológicas. “Omitir os critérios de sustentabilidade na recuperação ou retornar a uma economia de emissões intensivas de carbono ameaça perturbar a transição para a resiliência climática do baixo carbono”, desencadeando um “ciclo vicioso de contínua degradação ambiental, perdas de biodiversidade e mais surtos de doenças infecciosas zoonóticas”.

Além das ameaças à saúde pública, o bem-estar individual e social deve ser perturbado pela automação acelerada da força de trabalho. O colapso das economias mais vulneráveis pode ter consequências humanitárias pavorosas. E há os riscos crescentes para a liberdade individual, educação e prosperidade da geração mais jovem.  A digitalização abrupta pode criar novas oportunidades de trabalho, mas também precipitar os riscos de insegurança cibernética, fragmentação digital e desigualdade. A desconfiança da tecnologia e os desvios na sua utilização podem ter efeitos duradouros sobre a sociedade.

Mas o Fórum deixa claro que estas conjecturas não são exercícios de futurologia. “Ao contrário, elas nos lembram da necessidade de ação proativa hoje para moldar o ‘novo normal’ desejável.” O choque foi brutal, mas despertou sentimentos de solidariedade que, se canalizados na reativação das economias, podem “embutir mais igualdade social e sustentabilidade na recuperação, acelerando, antes que freando, o progresso rumo aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável de 2030”. Mas, para tanto, os riscos precisam ser manejados.


Historicamente não há qualquer padrão determinista para o desfecho de uma pandemia. As interpretações sobre a pior de todas, a Peste Negra, por exemplo, são ambivalentes: 
se para muitos historiadores ela recrudesceu aspectos mórbidos da cultura medieval tardia, para outros ela precipitou o processo que levaria à Renascença – para outros ainda, passado o choque, ela não produziu transformações duradouras. Plausivelmente as três tendências – à indiferença, ao progresso e ao retrocesso – interagiram entre si. Agora não é diferente. O mundo saiu do controle e escapou das nossas mãos. Há o risco de que elas não o recuperem mais – mas ainda está ao seu alcance apanhar essa massa crítica para moldar um futuro melhor. 

Editorial  - O Estado de S. Paulo


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