O Estado de S.Paulo
O governo está na defensiva contra um adversário que se sente jogando em casa
“Bola no chão”, disse o general Hamilton Mourão, o porta-voz político do
time dos militares no governo, referindo-se ao enfrentamento entre
Executivo e Judiciário, a questão mais relevante e perigosa no momento.
Ao sugerir como tratá-la, o general recorreu a uma frase da folclórica
figura de Neném Prancha (1906-1976), que foi roupeiro, massagista,
técnico e filósofo do futebol brasileiro: “A bola é de couro, o couro
vem da vaca, a vaca come a grama, então bola no chão”.
Mas também o time do outro lado, o do STF, parece ter adotado uma frase
de outra figura folclórica do futebol brasileiro, a do técnico Zezé
Moreira (1907-1998), que assim descrevia a vantagem de jogar em casa
mesmo contra equipes consideradas muito mais fortes: “Lá em casa até boi
vira vaca”. De fato, o STF está jogando em casa. E no ataque.
Não se trata apenas da questão dos inquéritos que o Supremo dirige e que
são clássicos do “follow the money” para chegar a quem organizou e
financiou ações contra instituições democráticas – a principal razão do
nervosismo no Planalto. Nem do formidável arsenal de medidas com o qual o
STF já vinha impondo limites ao Executivo, muito evidente quando o
Judiciário definiu o papel dos entes da Federação na crise de saúde. [lembrando que nos dias atuais - especialmente depois que as medidas adotadas pelo 'presidentes' dos estados e municípios, estão se revelando além de inócuas, contraditórias - há uma tendência a atribuir ao presidente Bolsonaro responsabilidade por ações que ele não praticou - falar que foi omisso é sem noção, já que as medidas que não surtiram o efeito desejado/esperado ficaram com governadores e prefeitos. Essa condição fez com que ideias do presidente continuassem nos planos das ideias.]
Ministros do Supremo, articulados a uma vasta comunidade de operadores
no campo do Direito (acadêmicos, advogados, juízes, procuradores),
derrubaram [(sic) sugerimos a leitura do parecer de Ives Gandra Martins] - com notável rapidez uma interpretação do artigo 142 da
Constituição favorável a colocar as Forças Armadas como uma espécie de
“poder moderador” entre os Poderes. “Isso é terraplanismo
constitucional”, resumiu o ministro Luís Barroso, trazendo a filosofia
de Neném Prancha para o campo jurídico. Em outras palavras, sumiu a
justificativa “técnica” ou “constitucional” ou “legal” para qualquer
intervenção política das Forças Armadas.
Pior ainda para o time do Planalto: o do STF ganhou um reforço
considerável com a postura do procurador-geral da República – que o
presidente tinha constrangido em público, obrigando Augusto Aras não só a
ser “técnico” nas suas ações, mas a parecer ser. E ser “técnico” neste
âmbito significa que a PGR e o STF tocam juntos os inquéritos que tanto
irritam o Planalto e os militares. Em termos das personalidades envolvidas na disputa, talvez a expressão
mais eloquente da grave tensão entre os poderes Judiciário e Executivo
esteja na evolução das posturas do presidente do Supremo, Dias Toffoli, e
do ministro da Defesa, general Fernando Azevedo, considerado entre seus
pares como uma brilhante cabeça política. Então chefe do Estado-Maior
do Exército, Azevedo foi deslocado em 2018 para ser o principal assessor
de Toffoli, que havia acabado de assumir a presidência do STF.
Naquela época, a ideia era promover um esforço conjunto (militares e
juízes) para pacificar um delicado ambiente pré-eleitoral. Hoje, Toffoli
enxerga “dubiedade” nas posturas do chefe do Executivo frente às
instituições democráticas. Enquanto seu ex-assessor, atual ministro da
Defesa, assina uma nota com o presidente da República e seu vice
afirmando que as Forças Armadas “não aceitam a tomada do poder por outro
Poder por conta de julgamentos políticos” – referência também aos
inquéritos do STF, da PGR e do TSE, vistos no Planalto como ferramenta
política para derrubar um governo eleito com 57 milhões de votos.
A natureza, o alcance e a profundidade das crises de saúde pública e
econômica acuariam por si qualquer governo brasileiro, mas o de
Bolsonaro se empenhou em agravar também a crise política, com o
resultado de ter de jogar na defesa nas três. Neném Prancha definia o
futebol como um jogo muito simples: “Quem tem a bola ataca, quem não
tem, defende”. A bola está com o STF.
William Waack, jornalista - O Estado de S. Paulo
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