Fernando Schüler
O STF erra ao tomar opinião como delito, assim como o governo ao tentar enquadrar charge na Lei de Segurança Nacional
Talvez não devesse, mas me surpreendo que o tema da liberdade de
expressão tenha se tornado central em nosso debate. Joel da Fonseca
definiu bem a questão: devemos punir ideias agressivas e violentas? Sua
resposta é negativa e veio com uma provocação: “me preocupo mais com a
‘justiça’ das redes do que com as falas violentas que ela busca punir”. Minha resposta também é negativa. Ela vem na trilha da primeira emenda
americana. Me parece também a linha de Hélio Schwartsman dizendo que a
democracia aceita “quaisquer críticas, em quaisquer termos, mas não
admite ações concretas com o objetivo de subjugá-la”.
O debate me fez voltar ao inquérito das fake news, conduzido pelo
Supremo. Muita gente que respeito me diz não ver ali nenhum problema e
que o ponto é simplesmente dar um basta a este “bando de fascistas”. Há
quem pense diferente. No mínimo a falta de clareza sobre o que
exatamente se está pretendendo punir. Resolvi conferir com um pouco mais de detalhe. Voltei ao documento em
que o ministro relator do inquérito apresenta sua lista de “mensagens
ilícitas” exemplificando como atua a “associação criminosa” que se
investiga. São 25 mensagens. Três delas trazem referência a intervenção militar ou
coisa do gênero (“passou a hora de contarmos com as forças armadas!”, me
pareceu a mais dura);
seis delas usam termos de baixo calão e
xingamentos (“canalhas”, “vagabundos”, “crápulas) e
16 não passam de
opinião política mais ou menos contundente.
Metade dirige-se não apenas ao Supremo, mas a outros Poderes e lideranças, ou simplesmente às instituições.
A que conclusão devemos chegar? O primeiro ponto é não julgar essas
coisas a partir do gosto pró ou contra o governo. Se alguém quer fazer
isso, boa sorte. De minha parte, não faço. Se o STF erra ao punir opinião, erra também o governo ao tentar
enquadrar na Lei de Segurança Nacional uma charge associando o
presidente à suástica nazista. A pergunta é sobre direitos. Sobre nossa
capacidade de separar o que é um crime e o que é retórica odiosa ou
ideias que julgamos politicamente insuportáveis.
Vamos repetir: dois terços das “mensagens ilícitas” citadas no inquérito
não passam de opiniões (dessas que a internet anda abarrotada) sobre o
STF e as instituições. Podemos fazer de conta que não, mas é evidente que há um problema aí.
Não acho que isto expresse os limites que desejamos para a liberdade de
expressão em nossa democracia. Não me refiro a ameaças de “estuprar” ou
“enforcar” quem quer que seja. A lei brasileira é bastante clara sobre
como lidar com essas coisas.
Me refiro exclusivamente ao tema da opinião. Individual ou organizada,
não importa. Opinião de grupos mais ou menos articulados, visto que é um
direito que pessoas de esquerda ou de direita se organizem, combinem
“levantar” hashtags para defender as ideias (corretas ou não) que
julgarem conveniente defender. Penso que o Brasil tem uma Suprema Corte da qual deve se orgulhar, por
muitas razões. Mas talvez lhe esteja faltando um exercício de
autocontenção. Considerar que ministros cumprem uma função pública e
estão sujeitos à crítica pública. Da mesmíssima forma que as demais
autoridades da República.
E mais: no contexto de uma sociedade que tende sistematicamente a abusar
da palavra. Pelo excesso, pelo grotesco, pela irresponsabilidade. E
para tudo isso encontra um antídoto: a irrelevância. A democracia não pode conviver com a ameaça direta e objetiva de
violência. Mas igualmente não deve conviver com o medo. O medo de
exercer a crítica, por ácida e contundente que seja. Não deveríamos deixar que a paixão política, que por vezes parece a
única variável orientando o debate público, obstrua nossa defesa dos
direitos mais elementares. Direitos dos quais, tenho certeza, a maioria
de nós não gostaria de abrir mão.
Fernando Schüler, professor - Folha de S. Paulo
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