É preciso retomar o tema da democracia ameaçada. A prisão de
Fabrício Queiroz conteve o avanço da extrema direita. Muitos interpretam
o perigo de golpe apenas como um blefe de Bolsonaro, um delírio que
agora se dissolve. São pessoas sensatas que me perguntaram quando soei o alarme se eu não estava exagerando. De uma certa forma, abordei este tema num artigo de fim de semana.
Lembrei a tensão nas democracias europeias dos anos 30 e as pequenas
pausas que surgiam entre elas. Muitos as interpretavam como o fim dos
problemas, um novo período de paz.
[democracia sob perigo?
A democracia no Brasil é 'à brasileira'.
Uma democracia pela metade, adaptada às conveniências dos donos do poder.
VEJAMOS:
- Se uma ação é realizada contra o Presidente da República Federativa do Brasil, JAIR BOLSONARO - eleito com quase 60.000.000 de votos, em eleições democráticas - tal ação é um ATO DEMOCRÁTICO.
- Já quando um cidadão PENSA que ministros do Supremo devem ser presos, e expressa tal PENSAMENTO, é considerado autor de ATO ANTIDEMOCRÁTICO, de um crime hediondo - lembrando que o pensamento foi expresso em uma reunião que deveria ser reservada e foi divulgada por decisão de um ministro do STF;
- Se um cidadão participa de um ato defendendo uma intervenção militar constitucional, realizada na forma prevista da Constituição Federal, é acusado de ATO ANTIDEMOCRÁTICO;
- Se um cidadão que manifesta pacificamente sua preferência pró Bolsonaro, é alvo de mandado de busca e apreensão e mesmo encontrando em sua residência alguns fogos de artificio, camisetas da seleção brasileiro, responde pela prática de ATO ANTIDEMOCRÁTICO.
Talvez, a democracia seletiva possa estar sob perigo e por isso muitos se preocupem, sempre fazendo ilações incabíveis. ]
Não tenho nenhuma intenção de comparar a extrema direita brasileira com a Alemanha nazista. Isto serviria apenas para reforçar a ideia de que exagero. Minha preocupação é apenas analisar a pausa. Ela pode ser aproveitada para se avançar na defesa da democracia ou pode ser considerada como o fim de um período de hostilidades. Muitos imaginam o golpe de estado clássico: tanques saindo dos quartéis e ocupando pontos estratégicos, Congresso e STF fechados. É uma espécie de tiro no coração da democracia. Acontece que, nos últimos anos, cresce o consenso de que a democracia é comida pelas beiradas, como um vírus que invade, gradativamente, seu pulmão até que pare de respirar.
Essa lenta e sistemática derrubada da democracia brasileira está em curso. Não há tanques na rua, nem censores dentro dos jornais.
Mas a informação de qualidade está sob intenso fogo. O IBGE teve contestado seus dados sobre desemprego; a Fiocruz, [decapitado? teve um presidente removido por usar o cargo para criticar o Presidente da República - aliás, aquele do Inpe foi seguido por um ex-ministro da Saúde = o Mandetta.] invalidada uma pesquisa sobre consumo de drogas; o Inpe, decapitado por seus informes sobre o desmatamento na Amazônia. O próprio Bolsonaro tentou, mas não conseguiu, suspender a Lei de Acesso à Informação. É como se as luzes de um edifício fossem sendo apagadas gradativamente. Na Fundação Palmares já não é possível contestar o racismo. O governo já não defende a diversidade cultural. Somos todos filhos de um mesmo Deus. Nas palavras do Weintraub: “Odeio a expressão povos indígenas.”
Três mil militares ocuparam a administração civil. No Ministério da Saúde desalojaram técnicos num momento em que se luta, e se perde, contra uma pandemia que já levou mais de 50 mil vidas. As armas são vendidas em maior escala, na medida em que cai o controle do Exército.
Na preservação ambiental, as luzes já se apagaram há muito. Na escuridão, crescem o desmatamento, o garimpo ilegal, a grilagem. Não se respeitam as leis, e os funcionários que tentam aplicá-las são demitidos. O avanço de um golpe clássico foi contido pelo STF. Mas ele foi propagado em faixas que pediam intervenção militar com Bolsonaro na Presidência. Frequentaram essas manifestações, além do presidente, generais no governo e o ministro da Defesa. Foi preciso prender extremistas e investigar as contas de deputados que financiam as manifestações. O Congresso não se manifesta. Está escondido atrás das togas dos ministros, esperando que canalizem sozinhos a agressividade digital bolsonarista.
Um Congresso que tem medo de tuítes sairia correndo ao ver o primeiro fuzil. Mas é preciso contar com ele. Felizmente, a sociedade começou a acordar. Manifestos surgiram em vários setores. Esboços de frentes vão se formando aqui e ali. Há sempre quem se ache o rei da cocada e não aceita certos parceiros. Mas o rumo geral é de união. Apesar da pandemia, surgiram as primeiras manifestações de rua. De um modo geral, pacíficas, um ou outro choque com a polícia, uma solitária faixa pedindo ditadura do proletariado, rompendo o tom. Seria importante interpretar a pausa apenas como um tempo que se ganha para se organizar, não relaxar, achando que as coisas se resolvem sem nossa intervenção. Uma semana depois da prisão de Queiroz, o TJ do Rio já concedeu foro especial a Flávio Bolsonaro e pode anular não só a prisão, como trazer o processo à estaca zero. [O TJ-RJ, restabeleceu parcialmente o Império da Justiça.
Quando anular todo o processo, ilegal, a Justiça estará restabelecida em sua plenitude.]
Daqui a pouco, volta toda a onda agressiva e vamos nos perguntar o que fizemos na pausa. As democracias europeias vacilaram inúmeras vezes, mas acabaram vencendo no final. Mas os analistas sempre se perguntam se a vitória não poderia ter vindo mais cedo, poupado mais vidas. Mesmo em dimensões desarmadas, o preço da vitória depende da maneira como interpretamos as relativas calmarias, se alimentamos ilusões conciliatórias ou compreendemos que, cedo ou tarde, a batalha se dará. [Quanto aos adversários da direita, lembramos que já tentaram impor suas preferências em 35, 64 e foram derrotados - serão novamente, basta que tentem.]
Blog do Gabeira - Fernando Gabeira, jornalista
Artigo publicado no jornal O Globo em 29/06/2020
[democracia sob perigo?
A democracia no Brasil é 'à brasileira'.
Uma democracia pela metade, adaptada às conveniências dos donos do poder.
VEJAMOS:
- Se uma ação é realizada contra o Presidente da República Federativa do Brasil, JAIR BOLSONARO - eleito com quase 60.000.000 de votos, em eleições democráticas - tal ação é um ATO DEMOCRÁTICO.
- Já quando um cidadão PENSA que ministros do Supremo devem ser presos, e expressa tal PENSAMENTO, é considerado autor de ATO ANTIDEMOCRÁTICO, de um crime hediondo - lembrando que o pensamento foi expresso em uma reunião que deveria ser reservada e foi divulgada por decisão de um ministro do STF;
- Se um cidadão participa de um ato defendendo uma intervenção militar constitucional, realizada na forma prevista da Constituição Federal, é acusado de ATO ANTIDEMOCRÁTICO;
- Se um cidadão que manifesta pacificamente sua preferência pró Bolsonaro, é alvo de mandado de busca e apreensão e mesmo encontrando em sua residência alguns fogos de artificio, camisetas da seleção brasileiro, responde pela prática de ATO ANTIDEMOCRÁTICO.
Talvez, a democracia seletiva possa estar sob perigo e por isso muitos se preocupem, sempre fazendo ilações incabíveis. ]
Não tenho nenhuma intenção de comparar a extrema direita brasileira com a Alemanha nazista. Isto serviria apenas para reforçar a ideia de que exagero. Minha preocupação é apenas analisar a pausa. Ela pode ser aproveitada para se avançar na defesa da democracia ou pode ser considerada como o fim de um período de hostilidades. Muitos imaginam o golpe de estado clássico: tanques saindo dos quartéis e ocupando pontos estratégicos, Congresso e STF fechados. É uma espécie de tiro no coração da democracia. Acontece que, nos últimos anos, cresce o consenso de que a democracia é comida pelas beiradas, como um vírus que invade, gradativamente, seu pulmão até que pare de respirar.
Essa lenta e sistemática derrubada da democracia brasileira está em curso. Não há tanques na rua, nem censores dentro dos jornais.
Mas a informação de qualidade está sob intenso fogo. O IBGE teve contestado seus dados sobre desemprego; a Fiocruz, [decapitado? teve um presidente removido por usar o cargo para criticar o Presidente da República - aliás, aquele do Inpe foi seguido por um ex-ministro da Saúde = o Mandetta.] invalidada uma pesquisa sobre consumo de drogas; o Inpe, decapitado por seus informes sobre o desmatamento na Amazônia. O próprio Bolsonaro tentou, mas não conseguiu, suspender a Lei de Acesso à Informação. É como se as luzes de um edifício fossem sendo apagadas gradativamente. Na Fundação Palmares já não é possível contestar o racismo. O governo já não defende a diversidade cultural. Somos todos filhos de um mesmo Deus. Nas palavras do Weintraub: “Odeio a expressão povos indígenas.”
Três mil militares ocuparam a administração civil. No Ministério da Saúde desalojaram técnicos num momento em que se luta, e se perde, contra uma pandemia que já levou mais de 50 mil vidas. As armas são vendidas em maior escala, na medida em que cai o controle do Exército.
Na preservação ambiental, as luzes já se apagaram há muito. Na escuridão, crescem o desmatamento, o garimpo ilegal, a grilagem. Não se respeitam as leis, e os funcionários que tentam aplicá-las são demitidos. O avanço de um golpe clássico foi contido pelo STF. Mas ele foi propagado em faixas que pediam intervenção militar com Bolsonaro na Presidência. Frequentaram essas manifestações, além do presidente, generais no governo e o ministro da Defesa. Foi preciso prender extremistas e investigar as contas de deputados que financiam as manifestações. O Congresso não se manifesta. Está escondido atrás das togas dos ministros, esperando que canalizem sozinhos a agressividade digital bolsonarista.
Um Congresso que tem medo de tuítes sairia correndo ao ver o primeiro fuzil. Mas é preciso contar com ele. Felizmente, a sociedade começou a acordar. Manifestos surgiram em vários setores. Esboços de frentes vão se formando aqui e ali. Há sempre quem se ache o rei da cocada e não aceita certos parceiros. Mas o rumo geral é de união. Apesar da pandemia, surgiram as primeiras manifestações de rua. De um modo geral, pacíficas, um ou outro choque com a polícia, uma solitária faixa pedindo ditadura do proletariado, rompendo o tom. Seria importante interpretar a pausa apenas como um tempo que se ganha para se organizar, não relaxar, achando que as coisas se resolvem sem nossa intervenção. Uma semana depois da prisão de Queiroz, o TJ do Rio já concedeu foro especial a Flávio Bolsonaro e pode anular não só a prisão, como trazer o processo à estaca zero. [O TJ-RJ, restabeleceu parcialmente o Império da Justiça.
Quando anular todo o processo, ilegal, a Justiça estará restabelecida em sua plenitude.]
Daqui a pouco, volta toda a onda agressiva e vamos nos perguntar o que fizemos na pausa. As democracias europeias vacilaram inúmeras vezes, mas acabaram vencendo no final. Mas os analistas sempre se perguntam se a vitória não poderia ter vindo mais cedo, poupado mais vidas. Mesmo em dimensões desarmadas, o preço da vitória depende da maneira como interpretamos as relativas calmarias, se alimentamos ilusões conciliatórias ou compreendemos que, cedo ou tarde, a batalha se dará. [Quanto aos adversários da direita, lembramos que já tentaram impor suas preferências em 35, 64 e foram derrotados - serão novamente, basta que tentem.]
Blog do Gabeira - Fernando Gabeira, jornalista
Artigo publicado no jornal O Globo em 29/06/2020
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