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quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Dilma tentou assassinar Nelson Rodrigues com requintes de crueldade

Augusto Nunes

O gênio sobreviveu à nulidade

O genial Nelson Rodrigues protagonizou tantos e tão admiráveis assombros que sobreviveu à morte física: seu último dia de vida foi também o da estreia na eternidade. O Nelson dramaturgo inventou o teatro com diálogos em português do Brasil. O ficcionista devassou o universo habitado por aquela que muitos anos depois seria batizada de “nova classe média”. O cronista que via a vida como ela é criou metáforas luminosas, frases imortais, imagens sublimes, personagens que resumem não o que os nativos gostariam de ser, mas o que efetivamente são. E o apaixonado por futebol descobriu, por exemplo, que “a mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana”. Fora o resto.

Quem usa a cabeça para pensar sabe que alguém assim talvez não caiba num livro com a espessura da Bíblia. O cérebro baldio de Dilma Rousseff achou possível espremer Nelson Rodrigues num parágrafo que irrompeu, sempre caindo de bêbado, no meio de qualquer discurseira sem pé nem cabeça. Por algum motivo misterioso, em setembro de 2012 ela deu de exumar, para tratar invariavelmente a pauladas, o escritor que teve a sorte de partir sem conhecer a doutora em nada. Dilma precisou de dois ou três palavrórios para deixar claro que nunca leu Nelson Rodrigues. Ou passou os olhos e não entendeu nada.

Em março de 2013, por exemplo, a presidente descobriu uma frase famosa de Nelson: “O escrete é a pátria em chuteiras”, reiterava o cronista quando se referia à Seleção Brasileira. [Registro: a Seleção Brasileira referenciada na frase do genial Nelson era a seleção do século passado e não o timinho ridículo de hoje. 
A diferença entre àquela SELEÇÃO e o timinho do Tite, é que aquela tinha craques e a de hoje tem pernas de pau, vendidos...nós, flamenguistas, agradecemos quando os nossos jogadores não são convocados para estragar a imagem e a moral no timinho.] Na gíria do futebol, escrete é sinônimo de time. Na cabeça avariada da inventora do dilmês, a pátria em chuteiras virou “a pátria de chuteiras”. Um mês mais tarde, Dilma fundiu a expressão mutilada e uma teoria celebrizada pelo cronista para incluir a maluquice na selva de vogais e consoantes que tentava louvar a Copa de 2014 e a seleção de Luiz Felipe Scolari. Reproduzido sem retoques nem correções pelo Portal do Planalto, o discurso improvisado por Dilma assassinou com requintes de selvageria Nelson Rodrigues, o raciocínio lógico e a língua portuguesa. Trecho:

“Uma outra coisa importantíssima surgiu no Brasil, importantíssima. E eu vou falar o que é. Ela está ligada, de uma certa forma, a uma crônica feita por um senhor que se tivesse nascido em qualquer lugar de língua inglesa seria considerada gênio lá. Ele fez uma crônica ─ ele chamava Nelson Rodrigues, ele era muito engraçado ─ ele fez uma crônica que chamava “Complexo de Vira-lata”. Ele dizia que ─ isso foi na época, se eu não me engano, do jogo com a Suécia, final com a Suécia, não tenho certeza, mas foi na final, um pouco antes da final com a Suécia ─ ele fez uma crônica que ele dizia o seguinte: que o Brasil tinha complexo de vira-lata e que ele não podia ter complexo de vira-lata, e que a equipe era boa, tanto que a equipe era boa que ela era boa tecnicamente, taticamente, fisicamente, artisticamente. Tanto é que nós dessa vez ganhamos a Copa. Mas ele sempre falava desse complexo de vira-lata que pode… a gente pode traduzir como um pessimismo, aquela pessoa que sempre acha que tudo vai dar errado, que ela é menor que os outros. E ele dizia uma coisa, e eu queria dizer isso para vocês. Ele dizia que se uma equipe entra… eu não vou citar literalmente, não, mas se uma equipe entra para jogar com o nome Brasil, se ela entra para jogar com o fundo musical do Hino Nacional, então ela é a pátria de chuteiras”.

Semanas depois, ao festejar em Brasília a reabertura do Estádio Mané Garrincha, Dilma emocionou-se com o monumento à ladroagem e espantou a plateia com uma triangulação envolvendo a oradora, o cronista e o artista do drible. Confira: “O Garrincha, na sua simplicidade, era um jogador que demonstrou que o Brasil não era de maneira alguma, nem tinha por que, era um vencedor, e não tinha porque ter esse arraigado complexo de vira-lata que o nosso cronista esportivo Nelson Rodrigues, um dos maiores teatrólogos do nosso país, nas vésperas da Copa do Mundo, da Copa da Suécia, denunciou a existência pela quantidade de gente que previa um fracasso”.

 Eis aí uma cretina fundamental!, teria exclamado Nelson se confrontado com a deformação delirante do que escreveu em 1958 — meses antes do início da Copa da Suécia, não às vésperas da final. O complexo de vira-lata se limitou ao País do Futebol. Surgido em 1950, quando a derrota na final contra o Uruguai transformou o brasileiro no último dos torcedores, o fenômeno foi revogado dez anos depois pelo triunfo na Copa da Suécia. Na Era PT, o que assolou estes trêfegos trópicos foi o oposto do complexo de vira-lata. Foi a síndrome do Brasil Maravilha, uma disfunção produzida por ilusionistas de picadeiro que induziu os muito malandros e os imbecis de nascença a enxergar um jovem ricaço no pobretão que trajava um fraque puído nos fundilhos.

Farsas desse gênero vicejam mais facilmente em terrenos adubados por velhas crendices. O brasileiro aprende ainda no útero que nossa bandeira é a mais bonita do mundo, embora ninguém se atreva a sair por aí combinando uma camisa azul e uma calça verde com o paletó amarelo. Aprende no berço que nosso hino é o mais bonito do mundo, muitos sustenidos e bemóis acima da Marselhesa. Aprende no jardim da infância que Deus é brasileiro, e portanto deve-se aguardar dormindo em berço esplêndido a chegada do futuro. Não é surpreendente que, no auge da popularidade de Lula, apenas 4% dos nativos tenham continuado a ver as coisas como as coisas são e a contar o caso como o caso foi.

Esses teimosos 4% seguiram vendo o Brasil em que metade da população estava excluída da rede de coleta de esgotos e distribuição de água tratada. Continuaram a enxergar a incompetência dos governantes, a inépcia dos oposicionistas, a corrupção endêmica, as fraturas do sistema de saúde, o sistema de ensino em frangalhos, os mais de 14 milhões de brasileiros incapazes de ler ou escrever, os incontáveis analfabetos funcionais, a economia à deriva, os morros sem lei, as fronteiras desguarnecidas, as organizações criminosas em expansão, a demasia de horrores a combater e tumores a extirpar. O rebanho seguiu balindo o mantra: se melhorar, estraga. O padrinho de Dilma fez de conta que todos os pobres tinham sido promovidos a gente de classe média. A afilhada de Lula fingiu ter erradicado a miséria. E os dois recitavam que só quem tinha complexo de vira-lata não conseguia contemplar a edição melhorada de Pasárgada parida pelo presidente que nunca leu um livro e aperfeiçoada pela presidente que jamais pronunciou uma frase com começo, meio e fim. Só poderia dar no que deu.

A síndrome do Brasil Maravilha apressou o parto da política externa da canalhice, fruto do cruzamento da soberba com a ignorância. Lula não viu diferenças entre os ódios milenares que separam árabes e judeus e a troca de desaforos numa briga de casal em Sapopemba. Por nunca ter folheado um livro de História nem dado as caras numa aula de Geografia, informou na Jordânia que, aos olhos dos brasileiros, “árabe é tudo turco”. Salvou-o o intérprete que certamente sabia o que ocorreu durante o Império Otomano. Por escassez de neurônios, Dilma Rousseff baixou por lá recomendando o diálogo com os psicopatas do Estado Islâmico. Gentis, os anfitriões evitaram sugerir-lhe que fizesse o primeiro contato. Entre nós: para uma Dilma, a perda da cabeça não faz falta alguma.

Gente que pensa há séculos se aflige com três enigmas: 
quem somos?; de onde viemos?; para onde vamos? 
Se tais perguntas forem formuladas num botequim do Brasil deste estranho 2020, ao menos uma resposta estará na ponta da língua de todos os frequentadores. Eles decerto ignoram quem somos e para onde vamos. Mas todos já sabem de onde viemos: do imenso buraco negro escavado durante 13 anos por um corrupto irrecuperável, uma nulidade insolente e um bando de comparsas vigaristas.

Daqui a 500 anos, como a maior parte da obra de Shakespeare, não estarão grisalhos os melhores momentos de 17 peças, 9 romances, 7 livros de contos e crônicas e milhares de artigos em jornais escritos por Nelson Rodrigues. O legado impede a morte de um gênio. A criatura que não sabe juntar sujeito e predicado logo estará enterrada, ao lado do criador, na vala comum das velhacarias históricas. Para Nelson Rodrigues, a seleção era a pátria em chuteiras, a dar botinadas em todas as direções. Dilma e Lula são a pátria de ferraduras. De ferraduras e pisoteando com ferocidade todas as formas de vida inteligente.

Revista Oeste - Augusto Nunes, jornalista  

 

 

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