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sábado, 28 de maio de 2022

Imbecis do mundo, uni-vos! - Revista Oeste

 Flávio Gordon

Graças à internet, o cidadão comum deixou de ser apenas olhos e ouvidos, adquirindo uma boca, pela qual passou a emitir opiniões inconvenientes aos outrora monopolistas do mercado de ideias 


Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock 
 
“É possível que nenhum de nós saiba nada do que é bom e belo, mas, enquanto ele julga saber algo, eu, como nada sei, nada julgo saber. E nisto parece-me que sou um pouco mais sábio que ele, por não julgar saber as coisas que não sei”

Platão, Apologia de Sócrates

“A internet deu voz aos imbecis”resmungou Alexandre de Moraes, ganhando os holofotes midiáticos com sua pose de bastião da democracia. Embora carregando as marcas distintivas de nossa República lagosteira, no geral constituída por material humano de quinta categoria, a fala apenas manifesta em escala nacional um fenômeno que é de ordem global. Recorrendo ao título da obra clássica do historiador norte-americano Christopher Lasch, poderíamos caracterizá-lo como uma “revolta das elites”, hoje voltada especialmente contra a democratização do debate público propiciada pelas redes sociais.

Antes acostumados a controlar a opinião pública por meio de uma imprensa amestrada e incrivelmente homogênea em termos político-ideológicos —, no mundo todo os representantes daquelas elites política, financeira e cultural crisparam-se de pânico reacionário ante o contato direto com um público. Se antes ele lhes servia apenas como objeto de uma retórica demagógica, agora virava sujeito concreto de interlocução, dispensando a função mediadora (donde media, em inglês; médias, em francês; mídia, em português etc.) tradicionalmente exercida pelo velho jornalismo.

Os barões da opinião pública
Graças à internet, o cidadão comum deixou de ser apenas olhos e ouvidos passivos, adquirindo uma boca, pela qual passou a emitir opiniões inconvenientes aos outrora monopolistas do mercado de ideias. 
O que era antes uma cômoda relação Eu-Isso para citar a clássica oposição do filósofo Martim Buber virou uma desconfortável relação Eu-Tu, carregada de tensão e imprevisibilidade. E com isso os barões da opinião pública não souberam lidar.

Uma anedota facilitará a compreensão do leitor sobre a mentalidade do clubinho. Há muitos e muitos anos, numa galáxia temporal distante, pré-internet, lembro-me de assistir a uma entrevista de bastidor na qual um jornalista veterano dizia a um colega: “Só maluco escreve para as Cartas dos Leitores”. Num tempo em que a seção de Cartas dos Leitores era o único canal de comunicação entre as redações e o público, que então podia ser facilmente domesticado pela editoria, esse tipo de deboche com os missivistas era quase uma tradição profissional no jornalismo. Daí que, na referida entrevista, ambos os jornalistas, mutuamente estimulados pelo senso corporativo de superioridade, tenham se permitido gargalhar da piadinha interna. Compreende-se que, hoje, o seu humor tenha mudado para pior, uma vez que os “malucos” já não se limitam a escrever cartas fatalmente destinadas à lixeira, mas confrontam o jornalista — e o acadêmico, e o político, e o magistrado — diretamente em seu perfil na rede social, tal como selvagens (maus selvagens!) a invadir um salão aristocrata.

Pois bem. Ao longo de décadas, aquela democracia de faz de conta, fundada sobre um debate público postiço e manietado, refletia-se não raro em eleições com cartas marcadas, nas quais as opções de voto consistiam numa versão “hard e numa versãosoft de uma só cultura política previamente estabelecida, ambas as versões rivalizando à superfície do mesmo establishment profundo. No Brasil, por exemplo, o eleitor passou duas décadas tendo de escolher entre petistas e tucanos, naquilo que o professor Olavo de Carvalho batizou de "estratégia das tesouras”, o mecanismo pelo qual socialistas marxistas e socialistas fabianos — hoje finalmente fundidos na chapa “Caipirinha de Chuchu” — repartiram os espólios da assim chamada Nova República.

A gota d’água para as elites globais
Tudo mudou a partir de 2016, quando a descentralização do mercado de informação e opinião deu sinais claros de repercussão no terreno da disputa política, trazendo para dentro da “festa de democracia” um “bando de deploráveis” egressos de “guetos pré-iluministas”, que deveriam ter sido mantidos do lado de fora. Isso foi a gota d’água para as elites globais, que, vendo dificultado o trabalho de edição da opinião pública, buscavam agora uma via direta de controle, uma forma de “editar um país inteiro”, objetivo que finalmente viria a ser alcançado em 2020, com a pandemia de covid-19.

Mas ali, em 2016, fenômenos como o Brexit e a eleição de Donald Trump para a Presidência dos EUA deixaram claro que o “consórcio” midiático já não controlava totalmente o fluxo de informações, pois nem mesmo uma das maiores campanhas de propaganda e infowar de que se tem notícia foi capaz de convencer a maioria da população britânica e norte-americana a votar conforme a vontade política dos donos do poder. Perplexa e ressentida com a insubmissão do cidadão comum às suas orientações, a classe falante pró-establishment reagiu muito mal, com um elitismo quase caricato. Primeiro, execrou a massa de novos atores recém-chegados ao debate público. Em seguida, como a demofobia escancarada não pegasse bem, amaldiçoou a internet livre, o próprio meio pelo qual, à revelia dos tradicionais mediadores (ou gatekeepers) da informação, essa massa lograra ascender à posição de sujeito das próprias opiniões. Na alma das elites globais, fervilhava um intenso sentimento de vingança contra 2016, o verdadeiro ano que não terminou.

Da demofobia saltou-se diretamente à demagogia condescendente, e o povo, antes objeto de ódio, passou a ser descrito como vítima passiva — de desinformação, de fake news, de discurso de ódio. Nesse sentido, uma fórmula foi consagrada no jornalismo de opinião: o apoio ao Brexit e a políticos como Trump havia sido um “grito” do povo contra o statu quo. Sim, um grito — no sentido de algo produzido de maneira inarticulada, à guisa de interjeição, como resposta mecânica a uma situação aflitiva. Enquanto o representante da elite iluminada se exprime de maneira articulada e autoconsciente, o povo emite um ruído, que lhe brota da garganta quase que à revelia. Quando vota, o membro do establishment fala. Já o povo, grita. Ou — quem sabe? — urra, guincha, grasna, bale… Produz, enfim, um som que é da ordem da natureza, não da cultura.

Hoje, já não há dúvidas de que essas agências de fact-checking, longe de instituições ideologicamente neutras, são agentes políticos de destaque no cenário global

A primeira reação, demofóbica, é ilustrada pela literatura produzida por intelectuais orgânicos do establishment global em reação aos acontecimentos do fatídico ano de 2016. Destacam-se nesse material o livro Contra a Democracia, do filósofo norte-americano Jason Brennan, e o artigo “Chegou a hora de as elites se erguerem contra as massas ignorantes”, do jornalista James Traub, cujos títulos são autoexplicativos.

No lugar de uma democracia “em crise” — marcada por “decisões estúpidas” como o Brexit e a eleição de Trump —, Brennan propunha a instauração de uma epistocracia, o governo dos “bem informados”. Traub, por sua vez, afirmava que a grande divisão política do futuro não se daria entre a esquerda e a direita, mas entre “os sãos” e “os raivosos descerebrados”, ou entre “o partido dos que aceitam a realidade” e o “partido dos que a negam”. As análises de Brennan e Traub são documentos históricos relevantes, por dizer às claras aquilo que a maioria do establishment sentia naquele momento, mas que raramente admitia em público.

Intelligentsia enfurecida
A segunda reação,
demagógica e condescendente, começou a se organizar em 17 de novembro daquele mesmo ano, em imediata resposta à vitória de Trump, cuja eleição foi atribuída à disseminação de “fake news” — um argumento que seria repetido no Brasil para explicar a vitória eleitoral de Jair Bolsonaro, que contrariou expectativas e enfureceu a intelligentsia
Foi então que duas dezenas de agências de fact-checking, com sede em diversos países, enviaram a Mark Zuckerberg uma carta aberta propondo uma parceria para “encontrar e desmontar informações falsas” na internet. Sem qualquer legitimidade para tanto, os signatários — dentre os quais as agências brasileiras Lupa, Aos Fatos e Pública-Truco — apresentavam-se como guardiões do “debate público sadio”. Afinal de contas, aquele animal irracional que “gritara” contra o statu quo por meio do voto em Trump precisava ser protegido de si mesmo, já que o excesso de liberdade nas redes poderia feri-lo.

Todas as agências signatárias da carta a Zuckerberg integravam uma Rede Internacional de Fact-Checking (“International Fact-Checking Network”), sediada no Poynter Institute, entidade sem fins lucrativos dedicada formalmente a aprimorar (e, informalmente, a homogeneizar e instrumentalizar) a prática jornalística ao redor do mundo. O grosso do financiamento do Poynter Institute provinha basicamente de duas grandes fundações “filantrópicas”: a Omidyar Network, de Pierre Omidyar, idealizador do eBay, e a Open Society, do megainvestidor George Soros. Em junho de 2017, por exemplo, as duas juntas haviam doado um total de US$ 1,3 milhão ao Poynter, com o fim declarado de incrementar as ações da Rede Internacional de Fact-Checking.

Um dos nós da Rede Internacional de Fact-Checking era o site PolitiFact, responsável por “checar” os discursos de campanha de Trump e, com isso, criar a narrativa segundo a qual quase todas as declarações do candidato republicano consistiam em “fake news”. Embora fosse mencionado de maneira neutra no noticiário brasileiro — como se checasse imparcialmente todo tipo de discurso político —, o PolitiFact jamais foi algo além de uma ferramenta de agitprop manejada por Soros e Omidyar, dois ferrenhos inimigos de Donald Trump, que fizeram de tudo para impedir a sua eleição e, num segundo momento, para boicotar-lhe o governo (ver aqui e aqui).

Hoje, já não há dúvidas de que essas agências de fact-checking, longe de instituições ideologicamente neutras, são, ao contrário, agentes políticos de destaque no cenário global contemporâneo. Em coordenação com os conglomerados tradicionais de mídia, com as big techs e com o establishment político globalista, integram uma vasta reação epistocrata à livre circulação de ideias nas redes, com efeitos palpáveis. Páginas e perfis de indivíduos e grupos posicionados no campo não esquerdista do espectro político têm o seu alcance reduzido, quando não são sumariamente banidos em processos kafkianos, nos quais não se concede ao acusado direito de defesa, nem sequer informações claras sobre o crimideia cometido. Postagens “subversivas” somem misteriosamente, graças ao mecanismo conhecido como “shadow banning”, o bloqueio do conteúdo postado por um usuário que, sem se dar conta de ter sido bloqueado, não entende por que, de um dia para o outro, as curtidas em seus posts despencam da casa dos milhares para a das dezenas. E assim por diante.

Ministério da Verdade anabolizado
Essa é a realidade atual de milhões de “imbecis” usuários das redes, cuja liberdade de expressão se tornou uma ameaça concreta aos monopolistas da palavra, diretores desse Ministério da Verdade anabolizado. O ódio incontido de Alexandres de Moraes e que tais advém da percepção recalcada de que, num debate franco e descentralizado, eles não teriam a menor chance de moldar a opinião pública à sua imagem e semelhança, pois ninguém os leva a sério. Carentes de boas ideais e bons valores, destituídos de qualquer mérito próprio senão o de bem se adaptar às panelinhas do poder, resta-lhes o exercício do mais puro autoritarismo, sempre presente ali onde falta autoridade legítima. O que a sua pulsão censora nos revela é um profundo e, aliás, plenamente justificado — complexo de inferioridade moral e intelectual.

Por fim, vale recordar a etimologia de “imbecil”, cuja semântica não é necessariamente negativa. A palavra vem do latim imbecillus, formada pelo prefixo de negação in– (“sem”) mais o vocábulo bacillum, diminutivo de baculum (“bastão, cajado”). Etimologicamente, portanto, imbecil significa “sem bastão”, com o sentido original de algo frágil, débil, carente de apoio.

Vista de outro ângulo, contudo, essa carência bem pode significar falta de necessidade, transmutando a fragilidade em fortaleza, a dependência em autossuficiência. Nesse sentido, um “imbecil” seria alguém que, para se manter de pé, com a espinha ereta, não depende de apoio externo, dispensando bastões, cajados e muletas — bastões como os mediadores da informação, cajados como os checadores de fatos, muletas como os editores da sociedade. Para vendedores de apoio, a perspectiva de uma tal imbecilidade é decerto perturbadora. Para o restante de nós, pode ser libertadora.

Sejamos, pois, imbecis! Imbecis do mundo, uni-vos! Nada tendes a perder senão as muletas! E que os epistocratas nos perdoem a impertinência de, não lhes obedecendo, ousar andar com as próprias pernas e pensar com os próprios miolos. Os cães ladram, mas a caravana fala…

Leia também “A negação da democracia”

Flávio Gordon, colunista - Revista Oeste


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