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sexta-feira, 22 de maio de 2020

O novo imposto e a mão de gato - O Estado de S.Paulo

Celso Ming


Mais uma vez, Paulo Guedes insiste na criação de um imposto que lembra a velha CMPF, o imposto do cheque
O que é, o que é? Tem focinho de gato, orelha de gato, olho de gato, garra de gato, mas tem uma peninha na cabeça? A resposta qualquer criança sabe: é um gato com uma peninha na cabeça. Pois, mais uma vez, o ministro da Economia, Paulo Guedes, insiste na criação de um imposto que lembra a velha CMPF, o imposto do cheque. Também desta vez, ele insiste em dizer que não tem nada a ver com CPMF. Mas não esconde que será um imposto provisório – que fique entendido – a ser cobrado sobre operações digitais.

Sempre que essa ideia aparece, vem com supostas meritórias intenções. Em 1996, quando o então ministro da Saúde, Adib Jatene, defendeu a criação da CPMF, argumentou que viria para financiar a saúde pública. Alguém poderia ser contra o melhor dos objetivos, o ataque às doenças? Logo se viu que era apenas um jeito maroto de vender o imposto, porque a arrecadação foi para o caixa geral e daí para onde o governo determinasse.


Agora, o ministro argumenta que é preciso recriar empregos. O novo imposto derrubaria os encargos sociais das empresas, que, por sua vez, seriam encorajadas a contratar pessoal, agora quando o desemprego corre solto. Esse disfarce de imposto provisório também é velho de guerra. O imposto do cheque também começou provisório. Em dois anos deveria ser extinto. De provisório em provisório, foi ficando. Durou dez anos. [o óbvio: o mesmo P que inicia provisório, inicia permanente.]

Achar que esse imposto não dói porque seria automaticamente cobrado pelos bancos é uma empulhação. O que não é operação digital nesta economia moderna? Todas as operações bancárias têm pelo menos algumas fases digitais, os pagamentos por cartão de crédito ou de débito são digitais; o comércio eletrônico é digital, a encomenda de comida para entrega em domicílio (o delivery) é digital. Além disso, não é preciso ser tributarista para saber que este é um imposto de péssima qualidade. Incide cumulativamente (em cascata) ao longo de toda a cadeia de pagamentos, o que é expressamente proibido pela Constituição (art. 154). Na medida em que onera a mercadoria com impostos sobre impostos, encarece as exportações e, assim, tira competitividade do produto brasileiro. [para ficar bem claro: incide nas duas pontas - paga quando recebe e paga quando paga = na entrada e na saída.] 

Ah, sim, o ministro garante que a alíquota será baixa, não só para reduzir o tamanho da facada, mas também para reduzir as distorções. Essa é também uma história conhecida. Um imposto assim sempre começa com uma alíquota quase simbólica. Mas, lá pelas tantas, falta dinheiro nos cofres públicos e o ministro de plantão dirá que não há outro jeito senão aumentar a alíquota e assim sucessivamente. [vide o IOF: alíquota diária até parece irrisória, suportável; 
só que quando você faz a operação financeira incide uma alíquota única, de apenas 0,38% = rendimento de dois meses da caderneta de poupança.
Um exemplo: faltando um dia para o aniversário de sua poupança você tem uma necessidade urgente e inadiável e para não perder o 'rendimento' da poupança você usa o cheque especial por um dia.
Mesmo que seja naquele banco dos 'dez dias sem juros' você paga de imediato 0,38% de IOF mais um percentual diário.
Para recuperar os 0,38% você tem que somar dois meses de poupança.] 

Se após tantos desmentidos essa anomalia for realmente recriada, Estados e municípios haverão de brigar por fatias do que vier a ser arrecadado sob o argumento de que o fato gerador do imposto é o mesmo do ICMS ou do ISS, que lhes cabe por direito. Finalmente, esse imposto vai sendo proposto na pior hora, quando o desemprego e a crise tiram renda do trabalhador, quando, altamente endividadas, as empresas estão quebrando e não conseguem sequer honrar seus compromissos junto com o Fisco.

Esta é mais uma mão de gato.

Celso Ming, colunista - O Estado de S. Paulo


domingo, 11 de fevereiro de 2018

O STF raramente falha, mas tarda

Por unanimidade, o Supremo Tribunal Federal decidiu que os planos de saúde devem ressarcir a Viúva quando seus clientes forem atendidos no SUS. As operadoras de medicina privada, com suas guildas e advogados, cultivaram a tese da inconstitucionalidade da cobrança por 20 anos. Quando o Congresso votou a Lei do Ressarcimento, o Papa era João Paulo II e Bill Clinton estava fazendo exame de sangue para que se comparasse seu DNA com aquele depositado no vestido da estagiária Monica Lewinsky.

As grandes seguradoras entregaram os pontos há anos, mas ainda havia operadoras, sobretudo de medicina de grupo, depositando o ressarcimento em juízo. Nesse cofre há cerca de R$ 3 bilhões. Ganhava-se tempo, queimando dinheiro com advogados e lobistas.  Antes da lei, obra do então ministro Adib Jatene, um milionário batia com o carro, sofria um traumatismo craniano, era levado para o pronto-socorro público de referência neurológica da cidade (a melhor escolha) e em 24 horas salvava-se sua vida. Em seguida, a família transferia-o para outro local, com ótima hotelaria, e o plano de saúde do doutor nada pagava ao SUS. A Viúva ficava com 80% dos custos médicos. Isso para não se falar dos planos que simplesmente desovavam seus clientes.

A decisão do Supremo acabou com a chicana e encerrou o capítulo. Abriu-se outro. Qual deve ser o valor do ressarcimento? Para onde vai o dinheiro? Hoje o ressarcimento custa a tabela do SUS, mais 50%. Ainda assim sai mais barato que a fatura dos hospitais particulares, onde em muitos casos cobram-se preços absurdos. Noutra ponta, se o dinheiro do ressarcimento passar por Brasília e pela burocracia pública, o hospital continuará na miséria, e o ministro frequentemente estará no exterior com sua comitiva.

(...) 
 VÍDEOS SUPREMOS
Há ministros do Supremo Tribunal que se fazem acompanhar por corpulentos guarda-costas. Diante dos esculachos sofridos pelo doutor Gilmar Mendes (um em Portugal e outro num avião), seria útil equipar as escoltas com câmeras.
Esculachou, é filmado. Simples assim.

MARAMBAIA HOJE
Michel Temer está pegando um solzinho na base naval da Restinga da Marambaia. Viajou acompanhado pelo “mínimo indispensável” de pessoas para servi-lo e protegê-lo. São 38, inclusive cozinheiro e arrumadeira.  A Marinha tem um eficiente serviço de taifa, e em seus quartéis a comida é boa. Não há taifeiro incapaz de arrumar um quarto.

Durante seu repouso, o doutor poderia refletir sobre a história da Marambaia e o país que governa. No século XIX aquela fazenda foi um viveiro de escravos contrabandeados pelo comendador José Joaquim Breves, um dos homens mais ricos do Brasil. Ele e irmão tiveram cerca de seis mil escravos, e em suas terras o governo não mandava. Em 1851 foram capturados por lá 199 negros contrabandeados, e seu advogado (Teixeira de Freitas) protestou: “Se isto continua, não vacila o reclamante em declarar que a vida e a fortuna de numerosos cidadãos, assim como a paz e a tranquilidade do Império, correm iminente perigo”.
A Abolição só veio em 1888 e, aos poucos, a fortuna dos Breves definhou. Seus bisnetos trabalhavam para viver.  Como dizem os juristas e os gatos gordos apanhados pela Lava-Jato: “Se isto continua...”


Elio Gaspari, jornalista

terça-feira, 13 de outubro de 2015

Criou-se um monstro



A tentativa de ressurreição da CPMF
Corria o início da década de 90, Collor disparara a bala de prata do sequestro da poupança e atingira o país. Felizmente, viria o Plano Real, a partir do impeachment do presidente, da posse do vice Itamar Franco e da ida de Fernando Henrique Cardoso para o Ministério da Fazenda. Alí começaria uma escalada da carga tributária, ainda por volta de 25% do PIB à época. No processo de estabilização da economia, era essencial, por óbvio, o equilíbrio fiscal. O país padecera a “década perdida”, quando a superinflação destroçara a contabilidade pública.

Dentro da tradição brasileira, o governo FH começou a reconstruir o sistema de financiamento dos gastos públicos essencialmente por meio de impostos, e o peso dos tributos não parou de aumentar, inclusive na sequência dos dois governos Lula. Ainda com Itamar, foi instituído o Imposto Provisório sobre Movimentação Financeira (IPMF), muito devido ao empenho pessoal e político do ministro da Saúde, o respeitado Adib Jatene.
Surgia um monstro. O “p” de “provisório” não seria respeitado, pois, após curto período em que foi revogado, o imposto voltou como “contribuição” (CPMF), para o Executivo não dividi-lo com estados e municípios. E o dinheiro, que era para ser destinado à Saúde, entrou no caixa único do Executivo e financiou inclusive gastos de custeio. Até que o Senado, em dezembro de 2007, extinguiu o imposto.

O governo Dilma II quer ressuscitá-lo, mas enfrenta grande resistência. Justificada, porque o longo tempo de convivência com a CPMF demonstrou a péssima qualidade de um gravame que, ao incidir em todas as fases de elaboração de qualquer bem ou serviço, por taxar qualquer movimentação financeira de empresa ou pessoa física, tem um efeito devastador nos custos de produção. As baixas alíquotas da CPMF são ilusórias, pois seu peso é crescente e exponencial no sistema produtivo. Mas os governos são atraídos pelo imposto devido ao seu dom de iludir o contribuinteapenas “dois milésimos”, costuma dizer o ministro Joaquim Levy, na defesa da CPMF de 0,2% —, embora tenha enorme capacidade arrecadadora. Esse 0,2% transferiria pouco mais de R$ 30 bilhões por ano para o Erário.

Outro efeito deletério é o social: ao comprar bens de primeira necessidade, as pessoas de baixa renda também pagam o imposto, mas que para elas pesa proporcionalmente mais que nos extratos sociais mais altos. Entende-se por que raros países usam este tipo de imposto.

Há também a questão da carga tributária. Hoje, ela está mais de dez pontos de PIB acima daquela de 1993. É compreensível que haja resistências, considerando, ainda, que o governo propõe a volta do imposto embora tenha um gasto total de cerca de 40% do PIB, uma enormidade. É impossível que não haja margem para fazer redução de despesas. Há, mas o Planalto não quer contrariar aliados políticos. Prefere penalizar o já assoberbado contribuinte.

Fonte: Opinião – O Globo