Rodrigo ConstantinoA
mudança de tom sobre a plausibilidade de o SARS2, vírus causador da
pandemia, ter se originado em laboratório foi uma das maiores
reviravoltas na cobertura de opiniões de especialistas na imprensa nas
últimas décadas. Ao ponto de a revista eletrônica Vox ter sido pega editando silenciosamente um artigo do ano passado para amenizar o tom de certeza que tinha dado para a origem natural do vírus — o jornal Washington Post fez a mesma coisa. O Facebook parou de censurar
artigos que defendessem a origem laboratorial — mas continuará
insistindo em não dar liberdade de expressão aos usuários, apesar do
fiasco (de fato, mal escrevi as linhas acima, fui censurado lá por esse motivo). Até o governo Biden andou se movimentando para exigir uma investigação melhor das origens do vírus, já que a da OMS não serviu.
Carta à Science quebra “mordaça” da narrativa sobre a origem da Covid
Caixa com ivermectina, um dos medicamentos usados no chamado tratamento precoce da covid-19 - Copyright © 2021, Gazeta do Povo. Todos os direitos reservados.
Assim
como se revelaram apressadas a afirmações peremptórias contra a origem
laboratorial do vírus, é bem possível que aconteça uma outra virada e
uma outra reedição de afirmações contra todo e qualquer tratamento precoce da doença que ele causa, a Covid-19. Não
faltam exemplos, entre influenciadores da mídia tradicional e da nova
mídia, de quem decretou que as soluções quase improvisadas dos médicos
para tratamento precoce seriam indignas de confiança, talvez
pseudocientíficas, certamente “negacionistas” — o adjetivo lamentável da
moda que foi cunhado originalmente para malucos que duvidam do Holocausto dos judeus.
Há uma grande
intersecção entre o grupo que descartou cedo demais a origem laboratorial e o
grupo que ainda afirma a ineficácia de todo e qualquer tratamento precoce. Merecem
uma segunda chance? É o que analisaremos aqui. Primeiro,
deixemos claro do que estamos falando: tratamentos precoces são
intervenções pré-hospitalares (os italianos dizem “tratamento
domiciliar”), com a intenção de que aliviar os sintomas da Covid-19, e,
de preferência, impedir que esses sintomas se agravem e o paciente seja
hospitalizado. Há um segundo significado relevante para “precoce”, aqui:
que esses tratamentos devem ser aplicados assim que os sintomas
começam, pois os efeitos podem ser sensíveis ao tempo.
O
tratamento precoce não foi proposto como cura originalmente, mas como
esperança. Havia um senso de urgência. Como disseram pesquisadores
italianos numa revisão
de tratamento domiciliar de meados de 2020, mencionando pedidos de
conselho vindo de médicos da América Latina: “Você só pode contar com
evidências muito escassas na literatura e com seu próprio conhecimento
para administrar os sintomas dos seus pacientes, e com a experiência”
dos autores.
Uma resposta definitiva na ciência
demora muito, e, quando chega aos livros-textos, já é tarde demais para
uma primeira resposta a uma nova doença. Não só a busca de alternativas é
prerrogativa médica, é bem possível que seja uma obrigação médica
nessas situações. Essa investigação clínica antecede a aplicação da
pesquisa científica na medicina. A primeira pode ser tão bem feita
quanto a última, a qual pode vir para confirmar o que foi originalmente
descoberto na prática clínica.
Como julgar os estudos
(........)
HCQ: onde a evidência é mais frágil,
mas ainda existente
A primeira droga de tratamento precoce a se tornar notória foi a hidroxicloroquina (HCQ), por causa dos resultados de sua aplicação junto ao antibiótico azitromicina pelo
médico Didier Raoult. Agora sabemos que os resultados de Raoult eram
bons demais para serem verdade. Mais do que isso, os estudos de HCQ
conduzidos em pacientes graves o suficiente para serem hospitalizados —
os que entraram na chamada “fase inflamatória” — indicam que a droga não
é eficaz numa etapa mais adiantada. Mas isso não significa que a
eficácia da HCQ no contexto precoce foi totalmente descartada.
O
que aconteceu com a HCQ foi que os estudos repetidamente chegaram perto
do limiar estatístico convencionalmente aceito para afirmar a eficácia,
sem ultrapassá-lo. O fato de os estudos terem se aproximado do limiar
repetidamente é sugestivo: pode ser que haja um efeito, porém não muito
forte, ou que é mascarado por variáveis como estágio da doença ou pelo
tamanho insuficiente da amostra. Esse limiar é
definido através do “valor p”, uma medida estatística que corresponde
grosseiramente à probabilidade de o resultado ter sido atingido por
“pura sorte”, sem haver realmente eficácia. A convenção metodológica nas
últimas décadas, especialmente nessa área, tem sido que não se tolera
que esse valor p ultrapasse 5%.
Porém,
ao se afirmar a ineficácia da HCQ com base no valor p acima de 5% — às
vezes apenas ligeiramente acima — está havendo uma amnésia coletiva dos
comentaristas científicos: há poucos anos, em 2019, muitos cientistas
propuseram o abandono dessa convenção, ou ao menos de uma interpretação
comum dela que é a que vemos em quem afirma ineficácia total da HCQ com
base nela. Valentin Amrhein e mais de 800 signatários disseram à Nature
que a interpretação dicotômica do valor p deve ser abandonada. De fato,
os estatísticos profissionais sempre souberam que, se o p for maior que
5%, isso não significa que a hipótese da eficácia foi descartada, ou
que a hipótese da ineficácia deve ser aceita.
Entre as drogas
propostas para o tratamento precoce, é verdade que a HCQ não é a estrela,
embora haja no conjunto agregado dos estudos do seu uso precoce uma redução de cerca de 25% na taxa de hospitalização, comparando o grupo
experimental com o grupo consolidado de placebo. As estrelas são outras.
As estrelas do tratamento precoce
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Por que tanta resistência contra todo
tratamento precoce?
- Política.
O que acontece com propostas que são politizadas é que, para sinalizar
membresia à tribo política associada a elas, algumas pessoas se engajam
no autoengano propagandista
de prometer o que não foi prometido originalmente. E, reativamente,
tribos políticas rivais passam a exagerar para o outro lado,
declarando-se detentoras de provas definitivas de que essas propostas
não funcionam e até que são imorais. A verdade não está necessariamente
no meio, assim como a razão não costuma ser a média entre duas loucuras.
Mas a verdade é alcançável pela mente paciente e menos atada por
compromissos tribais, e os estudos são um auxílio para escapar dessa
arapuca, embora alguns possam ser influenciados por ela. Um ingrediente
constante da politização é a hipérbole: um lado acusa o outro de
homicídio por propor solução ineficiente, e o outro devolve a acusação
dizendo que ignorar soluções possíveis é aumentar o número dos que
sofrem hospitalizados e mortos.
- Falsa dicotomia entre tratamento precoce e vacinas.
Quem contrai Covid-19 entre uma dose e outra da vacina, ou antes de ter
a oportunidade de ser vacinado, poderia ser beneficiado com o alívio
dos sintomas e o efeito protetivo do tratamento precoce. E quem se
tratou precocemente com sucesso adquiriu uma imunidade que pode
desafogar a fila da vacina, sendo posto na baixa prioridade.
- Má interpretação estatística dos estudos.
Este motivo mais técnico explica a resistência de alguns especialistas.
É preciso lembrar que a maioria dos pesquisadores não é especializada
em estatística, e a usa como uma ferramenta, às vezes em programas de
computador cujo funcionamento não entendem completamente. Aderem a
interpretações míopes do valor p sem perícia estatística.
- Captura de órgãos regulatórios e de aconselhamento médico pelas razões acima, e adesão acrítica a eles.
Esses órgãos, como a OMS, a FDA e o NIH, podem ser presa fácil das más
interpretações de estatística. Os bons observadores viram, especialmente
no começo da pandemia, o quanto esses órgãos podem ser falhos. A OMS chegou a desencorajar as máscaras.
- Conflito de interesses. A Merck, fabricante da ivermectina, lançou uma nota
alegando que a droga não tem eficácia para a Covid-19. A ivermectina é
barata e dá pouco lucro, especialmente depois de a Merck ter distribuído
bilhões de doses em 49 países antes da pandemia. É mais interessante economicamente para a Merck promover uma nova droga (como Monulpiravir)
que está lançando contra a doença. Aqui, não se deve ver
necessariamente esse conflito como consistindo em malícia e planejamento
vilanesco. As pessoas são perfeitamente capazes de defender seus
interesses inconscientemente, com o autoengano. Não que farmacêuticas
sejam famosas por errar por boas intenções... especialmente considerando
que a Merck já foi acusada de fazer campanha de assassinato de reputação contra médicos.
- Alegações de riscos das drogas. Aqui, recomenda-se olhar avaliações de riscos das drogas que antecedem
a politização do tratamento precoce para a Covid-19. A ivermectina é
usada há décadas sem grandes pânicos, e nos estudos de Covid-19 não
foram observadas grandes complicações. Não é difícil exagerar riscos
para qualquer droga: até o paracetamol pode matar em doses altas. Além
disso, as bulas de remédios não são documentos científicos, mas
documentos que conscientemente erram do lado da cautela: incluem todo
tipo de complicação que os pacientes passam na fase de testes, mesmo sem
evidências de que essas complicações vieram do medicamento. É por isso
que as bulas são tão medonhas.
ConclusãoSeria de se esperar que pessoa
s interessadas em ajudar os pobres teriam como uma das primeiras
reações a uma pandemia a procura por algum tratamento já disponível, barato e
seguro. Não às cegas, pois existem milhares de tratamentos e drogas e o tempo é
premente, mas com base em plausibilidade bioquímica e espectro de ação.
Infelizmente, essa expectativa encontrou os empecilhos acima.A medicina está cheia
de acidentes faustos em que uma droga que havia sido pesquisada para um
propósito se revela útil para outro.
O sedativo brometo de potássio foi
proposto no século 19 como uma droga antimasturbatória.
O carbolítio (carbonato
de lítio) foi proposto para bipolares porque há semelhanças de alterações de
humor deles com quem sofre de gota, que advém de muito ácido úrico no sangue,
que o carbolítio cortaria.
Mas bipolaridade nada tem a ver com ácido úrico:
outras formas de cortar o ácido úrico no sangue dos bipolares não surtiam
efeito. O carbolítio de fato modula o humor, mas o mecanismo de ação proposto
(a “comprovação”) era falso. O primeiro ansiolítico era um aditivo conservante
para a penicilina.
O famosíssimo Diazepam era só uma tintura para observar
amostras de tecido biológico em microscópio.
E, outro caso famoso, o Viagra foi
estudado inicialmente como tratamento para hipertensão e angina. Não seria uma
surpresa muito grande, nem um caso singular, se alguma droga já aprovada para
outras doenças pudesse ter algum efeito para tratar Covid-19.
Portanto,
a busca de tratamento precoce via reutilização de remédios deveria ser
um dos primeiros passos no curso de ação rápida quando uma nova doença
aparece. As “evidências anedóticas” dos médicos na prática clínica podem
ter valor, e muitos medicamentos eficazes hoje vieram exatamente delas,
sem falar em medicamentos que começaram como chás populares.
Os
médicos são mais capazes de fazer essas decisões quando estão em dia
com o conhecimento científico relevante. Porém não deve ser exigido
deles que apliquem o rigor máximo científico onde ele não é nem
necessário nem há tempo hábil para ele. Existe rigor clínico, rigor da
experiência, que merecem respeito assim como o conhecimento científico, e
seu valor foi provado em milênios de prática médica. O que os médicos
observam leva a análises mais rigorosas que podem confirmar as suas
conclusões, como discutido aqui.
De acordo com as
evidências atuais, é possível afirmar que houve um tabu midiático e de
profissionais, instituições e empresas com conflito de interesses para
suprimir, impedir e silenciar o uso de tratamento precoce para Covid-19,
assim como houve a respeito da hipótese de o vírus ter vazado de um laboratório na China. O custo em bem-estar e até em vidas é incalculável. Uma segunda revisão de posturas públicas está por vir.
*Eli Vieira é biólogo geneticista com pós-graduação pela UFRGS e pela Universidade de Cambridge, Reino Unido.
Ideias - Gazeta do Povo