Que fique bem claro: o brasileiro não é contra as castas oligárquicas que desejam furar a fila da vacina contra a Covid-19. É apenas contra ser passado para trás.
STF e STJ inventaram uma nova máxima: Vacina pouca, meu
imunizante primeiro!
Era só o que faltava. Os tribunais superiores de Brasília desejam furar a fila da vacina
contra a Covid. Requisitaram à Fiocruz doses em quantidade suficiente para
imunizar servidores e magistrados. Para justificar o privilégio, STF
e STJ recorreram ao escárnio. Alegam estar fazendo um favor ao país, pois a
ausência da aristocracia judiciária nos hospitais e postos de saúde tornará
mais ágil a vacinação dos brasileiros sem pedigree.
No ofício que endereçou à Fiocruz, o Supremo Tribunal
Federal pediu uma "reserva de doses" para 7 mil pessoas. Escreveu que
deseja "contribuir com o país nesse momento tão crítico da nossa
História." Anotou que, realizando sua própria vacinação, liberará
"equipamentos públicos de saúde para outras pessoas..." O Superior
Tribunal de Justiça ecoou os mesmos argumentos.
A Fiocruz fabricará no Brasil a vacina da logomarca
Oxford-AstraZeneca. Vinculada ao Ministério da Saúde, a entidade não cogita
fornecer vacinas senão para o Programa Nacional de Imunização, que se
encarregará de distribuir as doses para estados e municípios, quando for
possível. A fila é um microcosmo da democracia.
Rico ou pobre, o
sujeito se posiciona no seu lugar e espera sua vez. No caso da vacina contra a
Covid, a fila tornou-se uma questão de vida ou morte. Como não há imunizantes
para todos, foi necessário fixar uma escala de prioridades. Vacinam-se primeiro
os profissionais da trincheira da saúde. Depois, os brasileiros com doenças
preexistentes. Na sequência, os idosos do grupo de risco, incluindo algumas
togas. [ainda que se considerem e sejam considerados por alguns como supremos, só estarão no grupo de risco os supremos que portarem alguma comorbidade ou com mais de 60 anos.]
Na prancheta do comunista Niemeyer, Brasília era um Éden
igualitário. Junto com Lúcio Costa, idealizou um lugar onde todos viveriam
encaixotados em prédios iguais, plantados em superquadras idênticas. Fora da
prancha de desenho, a cidade converteu-se em protótipo de privilégio e
segregação.As edificações de Brasília foram dispostas segundo uma
lógica setorial. Há o setor hoteleiro, o residencial, o comercial, o de clubes,
o de embaixadas... Hoje, os habitantes da Capital estão distribuídos com a
mesma lógica do resto do país. Há os setores de ricos e os setores de pobres.
Existe a Brasília dos poderosos e a Capital dos impotentes.
A impaciência da cúpula do Judiciário subverte qualquer
noção de justiça. Abre-se um abismo entre os tribunais e o Brasil. Aqueles
prédios públicos monumentais, assentados no coração de Brasília... E o país lá
longe. Já se sabia que um pedaço da sociedade brasileira não tomará
vacina porque confia em Bolsonaro e tem medo de virar jacaré. Agora, quando a
crise sanitária entra numa fase em que os brasileiros começarão a morrer por
falta de vacinas, descobre-se que as Cortes brasilienses têm a sensibilidade de
uma pedra.
Se Deus intimasse a cúpula do Judiciário a optar entre os
seus quadros e a clientela preferencial das vacinas, ouviria uma resposta
fulminante: morra a turma do grupo de risco! E com isso ficaria claro que, para
certos setores, o privilégio é o grande acontecimento. Só o privilégio existe.
O resto é uma fria paisagem pandêmica. STF e STJ inventaram uma nova máxima: Vacina pouca, meu
imunizante primeiro!
Fux defende a indefensável 'reserva' de vacinas
Numa evidência de que os brasileiros são iguais apenas
perante a dívida pública, o ministro Luiz Fux, presidente do Supremo Tribunal
Federal, saiu em defesa do pedido de "reserva de doses" de vacina que a Corte
enviou à Fiocruz. Coisa suficiente para imunizar 7 mil pessoas, entre togas e
servidores. Numa entrevista à TV Justiça, Fux declarou: "Nós
também temos que nos preocupar para não pararmos as instituições fundamentais
do Estado —nem o Executivo, nem o Legislativo, nem o Judiciário, normalmente,
digamos assim, integrados por homens e mulheres que já têm uma certa
maturidade."
O ministro prosseguiu: "Nós pedimos de toda forma
educada, ética, um pedido dentro das possibilidades, quando todas as
prioridades forem cumpridas, de que também os tribunais superiores tenham meios
para trabalhar. E para isso precisa vacinar. Não adianta vacinar os ministros e
não vacinar os servidores. A difusão da doença seria exatamente a mesma."
Alguém já disse que a morte é o clube mais aberto do mundo.
O diabo é que ninguém quer entrar. Em meio a uma pandemia que está prestes a
colecionar 200 mil cadáveres no Brasil, a forma mais prática de fugir da morte
é a vacina. Na corrida pelo imunizante, as regras são sempre menos perigosas do
que a imaginação de autoridades que tratam o absurdo como uma outra
qualificação para "ética".
Noutro trecho da entrevista, Fux disse ter preocupação com
a saúde dos servidores do Supremo. Beleza. Roçou o bom senso quando afirmou o
seguinte: "Nós devemos ter servidores com comorbidades, com idade. Eles
vão entrar na fila normalmente. E nós vamos esperar nossa vez. Enquanto não
chega a cura, nós vamos trabalhar em prol das pessoas que sofrem, que têm
esperança de viver."
Ora, se os servidores "com comorbidades" e os que
têm "idade" entrarão normalmente "na fila" por que pedir
"reserva de doses"? Se "nós vamos esperar a nossa vez", o
mais lógico seria que Fux simplesmente fizesse uma autocrítica, elogiando o
comportamento da Fiocruz, que informou que não destinará vacinas senão para o
Plano Nacional de Imunização.
Quem comete um erro e não admite comete dois erros. Luiz
Fux ainda não se deu conta. Mas, na administração pública, todo o mal começa
com as explicações. Foi a partir de cobranças feitas pelo Supremo que o
Ministério da Saúde teve de explicar por que demorou tanto para divulgar um
plano de vacinação. Agora que as regras estão na vitrine, burlá-las em favor de
seres supremos seria como reconhecer que o Brasil do jeitinho virou um país que
não tem jeito.
Blog do Josias - Josias de Souza, jornalista - UOL